Psicóloga conta como seus pais e avós enfrentaram perseguição e pregaram o evangelho atrás da cortina de ferro
Quando Svitlana Samoylenko nasceu, quatro anos antes da queda do Muro de Berlim, o comunismo dava seus últimos suspiros. Do fim daquele regime ela lembra pouca coisa, detalhes como a cor do uniforme escolar e a disciplina rígida ensinada às crianças. Natural de Kirovograd, Ucrânia, ela morou no leste do país, na cidade de Lugansk, até terminar os estudos primários.
Se por décadas os adventistas daquela região sofreram perseguição atrás da “cortina de ferro”, hoje a igreja é prejudicada pela crise política que divide o país entre os separatistas pró-Rússia e os mais alinhados com a União Europeia.
No fim de 2014, por exemplo, um pastor adventista foi sequestrado e solto semanas depois com vários problemas de saúde, pois foi deixado apenas com a roupa do corpo em uma cela, no meio do inverno e sem comida suficiente. Nenhuma razão foi dada para essa prisão.
Apesar de viver no Brasil com o esposo, Daniel Meder, que é pastor em Curitiba, e de estar geograficamente distante da Ucrânia, Svitlana carrega consigo a inspiração que recebeu das histórias contadas por seus pais e avós. Nesta entrevista, ela fala um pouco sobre sua família e a fé adventista, revelando como sobreviveram sob o regime comunista.
Como foi sua infância na Ucrânia?
A Ucrânia é um dos maiores países da Europa e foi chamada de “cesta de alimentos” da ex-União Soviética. O país tem uma história interessante, pois fez parte de diferentes impérios em diferentes épocas, sem perder sua identidade e língua. Onde nasci, no leste, falávamos russo. Mas aprendi também o ucraniano, por influência dos meus avós.
Minha infância foi bem normal. O ensino na escola tinha alto nível de cobrança, principalmente nas disciplinas de ciências e matemática. As aulas só eram canceladas quando a temperatura caía para 20 graus negativos. Como uma típica criança adventista, eu estudei violino em uma escola de música. Tínhamos aulas quase a semana toda.
O maior evento da minha infância foi a chegada dos pastores norte-americanos à Ucrânia, logo depois da queda da União Soviética. Os adultos estavam empolgadíssimos. Meu pai foi o motorista dos evangelistas, pois era o único que tinha carro na vila. Eles levaram brinquedos de pelúcia, que não existiam na época, além de adesivos e lápis de cor, com cores e formas que nunca havíamos visto.
Seu avô foi pastor na época da União Soviética. Foi difícil para ele?
Como os outros pastores, ele tinha seu emprego normal durante o dia e exercia o ministério à noite, sem receber salário por isso. Antes de a minha mãe se casar, ela mudou de casa onze vezes, pois, quando alguém na cidade em que moravam descobria que eram cristãos, meu avô era ameaçado. Algumas vezes, no mesmo dia em que chegava a uma cidade, ele já recebia um recado: tinha que deixar o lugar em 24 horas.
Meus avós paternos também eram muito ativos na “igreja”. Eles organizavam cultos camuflados para que os adventistas pudessem ter um momento de adoração aos sábados. Tudo feito em segredo. Enquanto o culto era realizado no porão de uma casa, uma criança era incumbida de “brincar” no quintal. Caso a polícia chegasse, ela deveria gritar alguma frase-código para que os adultos, no porão, se preparassem. Então as Bíblias eram escondidas dentro de massas de pão e colocadas para assar. Cada um começava uma atividade diferente, como se estivessem preparando uma festinha de aniversário.
As reuniões de planejamento eram realizadas na casa do meu avô, pois era a última residência da vila. Assim, os pastores pegavam o último ônibus para a vila e se escondiam na floresta até que anoitecesse e então pudessem entrar na casa dele. Faziam a reunião durante a noite toda e, antes de raiar o dia, eles saíam e se escondiam novamente na floresta, até o horário do primeiro ônibus, para que voltassem ao trabalho.
O que vocês faziam para ter os livros da igreja?
Como não havia livros de Ellen White disponíveis, cópias eram feitas a mão e a partir de raríssimos originais. Em 1965, meu avô paterno copiou o livro Primeiros Escritos. Todos os livros eram encadernados com uma máquina que ele havia construído.
Quando se conseguiu dinheiro na floresta suficiente para comprar uma máquina de datilografia, as coisas ficaram muito mais fáceis. Usando papel carbono, dez folhas podiam ser copiadas de uma vez. O trabalho era feito à noite para evitar suspeita. Minha avó estendia cobertores nas janelas para abafar o som, e ela datilografava com a máquina sobre um travesseiro e cobertores por cima de sua cabeça.
Depois as páginas eram distribuídas sobre uma mesa para que os livros fossem montados. Posteriormente, meu pai aprendeu a tirar e revelar fotos por si mesmo e começou a fotografar as páginas dos livros originais. Dessa forma, o evangelho poderia ser pregado mais rapidamente.
Os adventistas, especificamente, sofreram muito no regime comunista?
Sim. Quando meu pai era criança, havia o constante perigo de as famílias adventistas perderem seus filhos, pois os pais que não enviavam as crianças para a escola no sábado eram considerados inaptos e corriam o risco de perder a guarda delas. Por isso, meus pais foram à escola, mesmo no sábado, até completarem o ensino médio; caso contrário, seriam enviados a um orfanato. Mas meus avós ensinaram valores aos filhos, o que fez com que eles continuassem firmes.
Meu pai foi proibido de frequentar a faculdade, assim como seus irmãos, pois, mesmo tendo passado em todos os exames, “crentes” não deveriam ter nenhum direito. O mesmo acontecia com os melhores empregos. Meu avô chorou na primeira vez que viu uma van cheia de Bíblias, quando os evangelistas americanos chegaram na década de 1990. Para ele, durante muito tempo isso parecia impossível.
Hoje os adventistas podem distribuir livros livremente por lá?
Eles podem e o fazem. Na vila em que meus pais moram, eles distribuem livros regularmente. Mesmo com 77 anos e recursos escassos, meu avô compra vários livros, CDs, DVDs e outros materiais da igreja para estudar e distribuir.
Há alguns anos, um amigo do meu avô declarou sentir que, durante a perseguição, os cristãos são mais dedicados. Ele lembrou que, quando tudo era proibido, os adventistas arriscavam a vida para adorar a Deus. Mas o conforto trouxe certo marasmo à vida da maioria, fazendo com que muitos desanimassem ou mesmo desistissem diante de qualquer problema.
De que forma essas experiências moldaram você?
Elas me fortaleceram para vencer muitas tentações. Até hoje não consigo colocar a Bíblia no chão nem embaixo de outro livro. O sábado também sempre foi tão sagrado para mim que nem passa pela minha cabeça deixar de guardá-lo por causa de um emprego. Sobre os dízimos e as ofertas, aprendi que, mesmo com a crise, tudo o que recebo deve ser consagrado a Deus.
De que maneira a Igreja Adventista está enfrentando a atual crise na Ucrânia?
No leste da Ucrânia, onde vivi, a igreja é relativamente forte. Infelizmente, com a crise, os adventistas também estão divididos entre Rússia e União Europeia. Meus pais estão cuidando de quatro famílias que fugiram do leste do país, e essas pessoas, assim como milhões de outras, não têm nenhuma perspectiva de quando poderão voltar para casa. Conheço muitos que perderam filhos, pois bombas estão sendo jogadas sobre a população.
Eu não imaginava que uma barbaridade dessas poderia acontecer de forma tão súbita. Isso nos mostra que, mesmo em nossa época, a qualquer momento, nossa liberdade pode ser tirada. Sabemos que nosso tempo aqui na Terra está acabando. É hora de acordar da sonolência espiritual e viver o privilégio da liberdade em Cristo.
A psicóloga
Lana, como é chamada pelos amigos brasileiros, fez intercâmbio organizado pelo governo dos Estados Unidos, em 2001, e depois foi estudar no Newbold College, na Inglaterra. Graduou-se em Psicologia e concluiu a pós-graduação em Psicologia do Trauma e o mestrado em Terapia Cognitivo-Comportamental. Atuou durante oito anos na Inglaterra, numa clínica particular, e também numa prisão de segurança máxima, com criminosos perigosos. Além disso, trabalhou com terapia assistida por golfinhos, com crianças e adultos autistas e com paralisia cerebral. Foi também na terra da rainha que Lana conheceu Daniel Meder, na época estudante de Teologia. Casados desde agosto de 2013, o casal pastoral trabalha em Curitiba (PR).
Publicado Originalmente na Revista Adventista de março de 2015