É dever inelutável do estudante do cristianismo devotar atenção especial ao capítulo escuro da apostasia da igreja, porque somente essa apostasia explica a demora da segunda vinda de Cristo, e projeta luz sobre muitas áreas da história secular. Seja sublinhado que essa apostasia da Igreja não afetou apenas a periferia, alguns membros ou congregações aqui ou acolá, mas afetou seu próprio coração. Este abandono da fé deve ser diagnosticado como uma doença gradual, estendendo-se através de décadas e séculos, progredindo do centro para a periferia, eventualmente envenenando cada célula do corpo. Não foi o resultado de um só erro, quer de um indivíduo preeminente, quer de uma igreja ou de um concílio eclesiástico. Indivíduos e igreja caíram em erro e foram restaurados mais de uma vez, como as páginas do Novo Testamento fazem-no transparentemente claro.
Nem foi a apostasia o resultado de uma deficiência de graça divina. Ungida com o Espírito Santo, a Igreja estava perfeitamente aparelhada para sua tarefa. Seu ímpeto original, ao sair “vencendo e para vencer”, era digno de seu divino Autor. O impacto inicial da proclamação do evangelho era tão extraordinário que seus adversários o descreviam como um transtorno do mundo. A vitalidade surpreendente da Igreja apostólica encerrava a promessa de que dentro de uma geração ou duas ela podia ter evangelizado o mundo de então. “Toda a autoridade…no Céu e na Terra” tinha sido outorgada a seu Fundador, cuja presença com a Igreja tinha sido prometida “até a consumação do século”.
O eclipse da Igreja, não pode ser atribuído tampouco a circunstâncias externas incoercíveis. Pressões sociais e políticas sobre a Igreja nascente só estimularam seu zelo de evangelização. Num sentido muito real “o sangue dos mártires foi a semente da igreja”. Quando irromperam as perseguições, a Igreja cerrou fileiras e prosseguiu em sua missão sem esmorecimento. Aos olhos estarrecidos de seus adversários, a Igreja continuou a crescer mesmo sob perseguição. Mas quando a perseguição deu lugar à tolerância, e mais tarde ao favor imperial, sob Constantino e seus sucessores, o zelo dos cristãos transformou-se em complacência, a humildade em orgulho, a dependência de deus em dependência do poder político.
O fato é que nenhuma “razão” pode ser aduzida para a apostasia da Igreja, se por “razão” queremos dizer circunstâncias justificadoras. Aduzir “razões” significa transferir a apostasia do plano de decisões moralmente livres ao da necessidade. Seria, em outras palavras, interpretar o fracasso como inevitável. Mas como a Igreja foi fundada pelo próprio Cristo, admitir que ela tinha de falhar em sua missão, seria atribuir a Cristo poder menos que divino. O Novo Testamento deixa, porém, bem claro que suficiente graça foi provida para que a Igreja triunfasse em cada prova. Com Paulo a igreja poderia dizer: “Graças, porém, a Deus que em cristo sempre nos conduz em triunfo, e, por meio de nós, manifesta em todo lugar, a fragância de Seu conhecimento”. Como não havia razão compulsiva por que Adão devesse cair em primeiro lugar, não havia razão compulsiva por que a Igreja devesse desviar-se do ideal divino. De outro lado, a Igreja, composta de agentes morais livres, estava sujeita a erro, como resultado das decisões livres de seus membros. Essa possibilidade de pecado e eclipse é inerente à idéia de liberdade. O reconhecimento deste fato salvaguarda a origem divina da Igreja, ao mesmo tempo que admite a realidade histórica da apostasia.
É a tarefa do historiador cristão, analisar a fundo o desvio gradual da cristandade da fé apostólica. No presente estudo, propomo-nos analisar cinco áreas em que a Igreja se afastou da posição cristã primitiva. Esta breve lista não pretende esgotar o assunto, mas tão-somente salientar as características principais dessa apostasia. Se a tendência, outrora, em certos círculos eclesiásticos, era de negar qualquer desvio das diretrizes bíblicas, observa-se hoje maior humildade e maior inclinação em admitir que nem tudo está bem com a saúde espiritual da Igreja.
I. Cisão no Corpo da Igreja
Um dos sintomas mais óbvios da enfermidade espiritual que acometeu a igreja foi a cisão crescente no corpo da Igreja entre o clero e os membros leigos. No estágio inicial a igreja toda era considerada “raça eleita, sacerdócio real, nação santa”. O edifício da Igreja era concebido como construído “sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”. Exceto pela posição dos apóstolos, cuja dignidade especial é reconhecida por todos, crentes individuais são comparados a “pedras vivas” e exortados a constituir “casa espiritual”, “sacerdócio santo”, a fim de oferecer “sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. Não havia divisão entre membros do clero e leigos. A Igreja era uma democracia representativa na qual anciãos e diáconos não exerciam maior autoridade do que a de “pastores do rebanho”.
Mas o descaso dos leigos por seus privilégios espirituais resultou numa transferência gradual de autoridade às pessoas eleitas para cargos de liderança na Igreja. Privilégios espirituais implicavam responsabilidades que a maioria tendia a negligenciar. A natureza humana displicente, acha mais fácil delegar o cuidado da alma a outra pessoa cuja piedade é acima de suspeitas. De outro lado, uma certa medida de autoridade suscita o desejo de maior autoridade, e autoridade não freada tende a se tornar absoluta. O único freio à autoridade desmesurada teria sido um corpo de leigos esclarecidos e responsáveis. Mas o cidadão comum do Império Romano não mais aspirava a assumir sua parcela de responsabilidade na esfera religiosa do que na política. O esgotamento geral de energia moral que caracterizou os dias finais do Império não podia deixar de afetar a vitalidade da Igreja no período pós-apostólico. Que a Igreja retivesse tanto de seu vigor até os dias de Constantino, era uma fonte perene de admiração ao mundo pagão, e testificava de sua origem divina.
À medida que os membros leigos abriam mão de suas responsabilidades religiosas, o clero assumia mais do que sua medida justa. A democracia original da Igreja, expressa no conceito do “sacerdócio universal dos crentes”, foi substituída por uma oligarquia clerical que dominava sobre a massa cada vez mais passiva dos leigos. O pensamento gnóstico com sua ênfase de que para o crente ordinário bastava fé para a salvação, ao passo que os poucos eleitos possuíam gnosis, “conhecimento”, contribuiu para acentuar essa tendência. Foi uma ironia trágica da História que heresias, embora combatidas com energia, tinham a subtileza de moldar permanentemente o pensamento de seus adversários.
É ponto pacífico que a igreja abraçava originalmente a convicção de que “há um só Deus e um só Mediador entre deus e os homens, Cristo Jesus”, excluindo, deste modo, mediação angélica ou humana na confrontação do homem com Deus. No entanto, a opinião que prevalecia durante a Idade Média era que o leigo não tinha acesso direto a Deus, exceto através do sacerdote que o admitia na Igreja através do batismo, retinha nas mãos sua salvação eterna pela ministração dos sacramentos, e o preparava para a morte através da extrema-unção. Esse cerceamento da autonomia espiritual dos leigos fez com que a Igreja perdesse a reserva imensa de energia moral latente na participação leiga na vida e obra da igreja.
Segundo tendência bem conhecida da natureza humana, era de se prever que anciãos ou bispos das igrejas principais, usualmente nas maiores cidades do Império, ganhassem de início uma ascendência administrativa, e mais tarde espiritual, sobre seus pares em igrejas vizinhas. Esse processo, uma vez iniciado, só podia ganhar ímpeto até que os Bispos de Roma e Constantinopla se tornassem respectivamente o papa da Igreja Ocidental e o patriarca da Igreja Oriental. E quando as duas metades do Império se separaram definitivamente, era inevitável que as igrejas de Roma e de Bizâncio seguissem caminhos à parte, como de fato ocorreu em 1054 A.D.
Se a enfermidade mortal daIgreja resultava, em grande parte, da cisão entre o clero e os leigos, então o melhor remédio para renovamento espiritual consistia em reparar a brecha. Isto significava restaurar aos membros leigos seu verdadeiro papel na Igreja. Mas o que testemunhamos durante os séculos escuros da Idade Média é uma tendência crescente do clero no sentido de definir e consolidar seus privilégios.
II. Salvação pelas Obras
Igualmente deletéria para o bem-estar espiritual da Igreja era a doutrina da salvação pelas obras, que gradualmente permeou a teologia popular. Cristãos de origem judaica eram particularmente sujeitos a este erro, como depreendemos de uma leitura da carta aos gálatas. O evangelho, em vez de ser as boas novas do perdão dos pecados pela fé em Cristo, pouco a pouco passou a ser considerado uma nova “lei”. Outrossim, a natureza da sociedade romana, com sua longa tradição de governo, pela lei tomava os adeptos da fé cristã suscetíveis à tendência legalista. O orgulho natural do homem exige que ele opere sua própria salvação para que tenha de que se vangloriar. Fazer nossa esperança de salvação depender inteiramente da graça divina, contraria o sentimento de estima própria arraigado em cada coração. À base de toda concepção pagã de salvação jazem obras meritórias. Como resultado o batismo, participação na Ceia do Senhor, e até martírio passavam a ser interpretados como “obras”. A estes foram acrescentados, no curso dos anos, jejuns, celibato, atos de penitência, peregrinações, flagelação, construção de igrejas, e, eventualmente, participação nas cruzadas contra os sarracenos, turcos e hereges. Agostinho está quase que só entre os escritores patrísticos em sua insistência sobre a doutrina de salvação pela graça.
No clima dominante de salvação pelas obras, a razão para a morte de Cristo sobre a cruz, que era intuitiva aos cristãos primitivos, tornou-se um tropeço ao pensador medieval. Tanto assim que o desafio foi aceito pelos escolásticos, tais como Anselmo, que escreveu uma obra Cur Deus Homo, “Por que o Homem-Deus”, na qual ele tenta justificar a encarnação e paixão de Cristo. Que esta verdade axiomática do cristianismo precisasse agora ter uma explicação racional, mostra que ela havia perdido seu significado existencial para o homem comum.
Um erro leva inevitavelmente a outro. Dia chegaria em que a noção de que os santos praticaram maior número de boas obras do que exigido pela “lei” obteria aceitação nos meios teológicos. Essas obras super-rogatórias dos santos vieram a constituir um tesouro de méritos que a Igreja podia pôr a disposição de pecadores necessitados. Disto, à noção de indulgências, era apenas um passo. Concedidas no começo como recompensa por serviços prestados à Igreja ou por atos de penitência praticados, gradualmente estes serviços foram substituídos por pagamentos monetários, e finalmente pelos abusos escandalosos da venda de indulgências, denunciados por Wiclef e reformadores subsequentes. De início as indulgências visavam apenas à remissão de penas temporais impostas pelo confessor; mas acabaram sendo interpretadas como remissão também de penas a serem sofridas no pugatório. Na pregação de uma das cruzadas, o papa promete efetivamente: “a retribuição dos justos e aumento de salvação eterna” em troca de dinheiro para financiar a guerra santa.
Outro produto da concepção errônea de salvação pelas obras, foi o sacramentalismo, isto é, a crença em que o batismo, bem como o sacramento da eucaristia, como a Ceia do Senhor veio a ser chamada, tinha efeito quase mágico sobre o recipiente, garantindo sua salvação. Independentemente do caráter do ministrante, ou da fé do recipiente, cria-se que o sacramento tinha eficácia para o fim proposto, ex opere operato, isto é, automaticamente. A transformação do ofício de ancião ou guia espiritual no de sacerdote acarretava a noção de que o sacerdote devia oferecer sacrifícios a exemplo dos sacerdotes israelitas e pagãos. Que mais natural do que interpretar a comunhão do pão e do vinho, que originalmente comemorava “a morte do Senhor, até que Ele venha”, como o sacrifício perpétuo e incruento da missa? Mas um pouco de reflexão teria mostrado que a noção de um sacrifício perpétuo chocava-se com a doutrina do Novo Testamento de que o sacrifício de Cristo só podia ocorrer uma vez para sempre.
Inexoravelmente, todo plano de salvação pelas obras apenas contribuía para perpetuar a servidão humana. O fardo do legalismo, do qual Cristo veio libertar o homem, foi de novo atado às costas do crente na Idade Média. Como regra, as massas que adoravam nas belas catedrais da Europa jamais experimentaram plenamente a liberdade conferida por Cristo e que faz os homens verdadeiramente livres. As catedrais góticas, com suas espirais apontando para o céu, erigidas com o trabalho de amor de muitas gerações, permanecem como símbolos da aspiração do homem a algo que escapava a seu alcance. Salvação como recompensa de obras meritórias sempre permanece além do alcance humano.
III. A Posição das Escrituras
Todos concordam em que a proclamação original das boas novas centralizava-se na Bíblia. Os evangelhos insistem em que os acontecimentos decisivos no ministério de Cristo ocorreram em cumprimento das Escrituras. Pedro, em seu sermão no dia de Pentecostes, validou sua interpretação da vida, morte e ressurreição de Cristo por repetidos apelos ao Velho Testamento. Nisto estava apenas seguindo o precedente do próprio Cristo que, no caminho de Emaús, “começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas”, expunha aos dois discípulos” “o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras”. A Igreja apostólica plantou seus pés diretamente sobre a autoridade do Velho Testamento. Paulo descreve a Igreja como sendo edificada “sobre o fundamento dos apóstolos e profetas”. Os apóstolos falaram como testemunhas oculares e desfrutavam num grau especial da direção do espírito. Suas instruções escritas eram, consequentemente, reputadas como normativas e de igual autoridade com “as outras Escrituras”. Como fonte de leitura devocional, e como a arma mais valiosa para combater as várias heresias, a Igreja para todos os efeitos práticos, tinha o Novo Testamento completo pelo fim do segundo século.
Ao passo que nos primeiros séculos as Escrituras desfrutavam na Igreja a posição indisputável de regra única de fé e prática, gradualmente uma tradição oral, da qual a hierarquia se considerava depositária, obteve uma autoridade idêntica, ou quase idêntica às Escrituras. Outro competidor por uma posição de influência e autoridade, surgiu nos escritos patrísticos da idade pós-apostólica aos quais, nas disputas teológicas da Idade Média, se apelava tão frequentemente como às próprias Escrituras.
Forçada a dividir sua autoridade com a tradição e a literatura patrística, encerrada numa língua desconhecida das massas da Europa, a saber, o latim, numa época de analfabetismo quase geral, as Escrituras foram praticamente esquecidas durante esses séculos escuros. Coube aos Valdenses e cátaros, lolardos e hussitas, precursores da Reforma, redescobrir seu poder regenerador. Possuir ou ler as Escrituras no vernáculo era, naqueles tempos, passível de punição pela igreja, como é fácil de se verificar em muitos autos-da-fé movidos contra supostos hereges. Da acusação contra um lolardo – assim eram chamados os seguidores de Wiclef na Inglaterra – que data do século XV, lê-se: “Nicolau Belward é um da mesma seita e tem um Novo Testamento que ele comprou em Londres por 4 marcos e quarenta pence, e ensinava o dito William Wright e Margery sua esposa, e trabalhou com eles durante um ano e estudou diligentemente no dito Novo Testamento”. Como observa o historiador Trevelyan, esta passagem mostra que a leitura da Bíblia era motivo para perseguição, e que os lolardos estavam dispostos a pagar somas exorbitantes para possuir uma cópia da Bíblia. A Bíblia, no todo ou em parte, era copiada a mão, o que tornava seu preço quase proibitivo ao comum do povo. É um monumento à fé dos lolardos o fato de estarem dispostos a tudo sacrificar, mesmo a vida, pelo privilégio de estudar a Bíblia na sua língua materna.
Privada de sua ancoragem nas Escrituras, ignorante de suas verdades eternas, era inevitável que a Igreja se distanciasse cada vez mais do ensino apostólico. Deve-se à Reforma a restauração da Bíblia a sua posição básica como fonte de iluminação espiritual e pedra de toque de toda doutrina religiosa.
IV. União da Igreja com o Estado
Tendo sobrevivido vitoriosamente às tempestades de perseguição no tempo do Império Romano, a igreja experimentou seu pior revés quando o favor imperial lhe foi imposto. Identificando seu futuro com o de uma dada cultura ou poder, a Igreja negava desse modo sua universalidade e caráter transcendental. Seu testemunho desse momento em diante foi sufocado pela necessidade de cortejar o favor dos poderes em existência. A majestade do Império era substituto pobre para a majestade de Cristo como Senhor da Igreja. A convocação, por Constantino, do Concílio de Nicéia, em 325, era sugestiva da ascendência que outros imperadores tentariam exercer sobre a Igreja. A reação contra essa tendência provocou a contenda pela supremacia entre o papado e o Santo Império Romano que enche tantos capítulos da história medieval. Se o princípio de separação entre a Igreja e o Estado, expresso por Cristo na fórmula: “Dai, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, tivesse sido observado fielmente, a Igreja teria escapado a humilhações, de um lado, e do outro, ao estigma de ter promovido guerras em nome da religião.
Depois de se apoiar durante quase um século no braço do Estado, a Igreja tremeu quando Alarico, à frente dos visigodos, saqueou Roma, no ano 410 A.D. A vulnerabilidade do poder secular, do qual dependia, provocou uma onda de consternação que alcançou até Jerônimo no isolamento de seu mosteiro em Belém. Para muitos parecia que se a ordem política naufragasse, a Igreja seria arrastada no desastre geral. A crise moveu Agostinho a escrever sua obra, A Cidade de Deus, a primeira tentativa de esboçar uma filosofia cristã da História. A despeito, porém, de sua perspicácia, Agostinho deixou de advertir a Igreja contra o perigo de concubinagem com o Estado, qualquer Estado.
Para resguardar sua função espiritual, era vedado à igreja tornar-se um instrumento do Estado, como era a intenção óbvia, mas não declarada, de Constantino; nem devia procurar controlar o Estado como se fosse capaz de cumprir sua missão sem apoio político. Reclamando o apoio dos poderes constituídos, a Igreja nega a pretensão de ser uma instituição divina contra a qual os poderes do inferno não haveriam de prevalecer. A subserviência ao Estado mais de uma vez cegou a Igreja a suas responsabilidades morais e espirituais, e a implicou em tentativas de abafar a liberdade de consciência que é a própria essência de sua vida. Todo esforço de silenciar os hereges pelo poder da espada, em vez de pelo poder do Espírito, era uma admissão tácita de bancarrota espiritual, que não podia deixar de impressionar, desfavoravelmente, mentes refletivas.
V. Perda do Zelo Missionário
Outra tendência sintomática da enfermidade da Igreja foi sua perda do fervor missionário. Chegaria o dia em que a Igreja que tinha sido investida com a responsabilidade de ir e fazer “discípulos de todas as nações”, e que num primeiro arroubo de entusiasmo fizera progressos notáveis, daria maior valor à fuga do mundo do que à conquista do mundo para Cristo. Depois de dois séculos de expansão constante, durante os quais o conhecimento de Cristo foi espalhado da Espanha, no Ocidente, à Pártia no Oriente, e da Inglaterra no Norte à Núbia no sul, seu ímpeto começou a diminuir. Houve adesões em massa quanto, sob Constantino e seus sucessores, no trono de Constantinopla, tornou-se expediente político possuir afiliação com a Igreja. Mas essas não podem ser creditadas ao zelo missionário da Igreja. Ao contrário, pode-se, com razão, supor que este engrossamento súbito das fileiras dos crentes foi um fator que contribuiu para rebaixar o tom espiritual da Igreja.
É um triste comentário sobre o estado da Igreja, que no quarto e no quinto séculos missões entre os povos pagãos da Europa foram levadas a cabo com muito maior energia pelos arianos, a despeito de seus erros doutrinários. Assim se explica que os hérulos, os godos, os vândalos, os francos e os lombardos primeiro ouviram o evangelho dos lábios de missionários arianos. O mais bem conhecido destes pioneiros foi Ulfila, qua trabalhou para a conversão dos visigodos, e cujo principal monumento foi a tradução da Bíblia para o gótico. Evidência de que a Igreja reteve maior vitalidade na periferia do que no centro, é o trabalho notável que os missionários irlandeses Columba, Columbano e Gallo levaram a efeito para a conversão da Escócia, Inglaterra e os bárbaros do continente. De idêntico zelo apostólico foi o anglo-saxão Bonifácio, que introduziu o cristianismo entre os bávaros e turíngeos na Alemanha.
Enquanto a Igreja avançava lentamente no centro e norte da Europa, sofreu grave revés quando os países do levante e do norte da África foram varridos pelas conquistas islâmicas. Em 711 os sarracenos cruzaram o Estreito de Gibraltar e penetraram na Espanha, esmagando em seu avanço o reino dos visigodos. A própria França foi invadida, e só em 732 foi a ameaça à Europa removida pela vitória de Carlos Martelo, na batalha de Poitiers. Nossa preocupação aqui é apenas apontar que a Igreja estava sofrendo uma paralisia progressiva. Como um todo, tinha perdido a noção de sua missão. Nenhum esforço organizado foi feito para reintroduzir o evangelho nas terras ocupadas pelos seguidores de maomé. Exceto pelas tentativas esporádicas de um Francisco de Assis, que pregou ao sultão do Egito, ou de um Raimundo Lulo, da Espanha, que pereceu como mártir em sua missão a Túnis em 1315, a Europa cristã permaneceu indiferente à conversão dos infiéis. As cruzadas nunca foram concebidas como empresas missionárias, e só foram levadas a efeito quando os turcos seldjúcidas, que tinham ocupado Jerusalém, proibiram as visitas aos lugares santos pelos peregrinos cristãos. Ainda mais tarde, uma Europa dividida contemplou indiferente a ocupação turca da península balcânica e a queda de Constantinopla. O fato de a Europa oriental pertencer à esfera de influência da Igreja Grega Ortodoxa, explica em parte por que nenhum dedo se moveu para socorrê-la. E mesmo depois da luz da Reforma ter quebrado as trevas da Idade Média, nenhum esforço organizado foi feito pela Europa nominalmente cristã para conquistar os turcos pelo poder do Espírito, em vez de pelo poder da espada.
Um fator contribuinte para que a Igreja perdesse a noção de sua missão foi o desenvolvimento do ideal monástico. Afastamento do mundo, em vez de conversão do mundo, foi o sonho ao qual milhares de cristãos se devotaram. Esse ideal promovido pelo misticismo ascético, tinha seu aspecto salutar como um protesto contra o hedonismo pagão; mas, levado a extremo, obscureceu o fato de que a Igreja, embora não deste mundo, tinha uma missão a cumprir no mundo. O quietismo de proveniência oriental aliou-se com tendências ascéticas para roubar à Igreja seu dinamismo original. A atitude passiva dos leigos e o ideal monástico, conspiraram para produzir a letargia que manteve a Igreja em suas garras vários séculos.
O fato da apostasia da Igreja ocupa uma posição-chave em qualquer interpretação cristã da história. Seria impossível justificar a presença de uma Igreja Perfeita, fiel a sua missão de evangelizar o mundo, não tendo completado sua tarefa depois de dois milênios. Querer compreender a história da humanidade sem levar em consideração que a Igreja caiu de sua pureza apostólica e perdeu muito de seu vigor espiritual, é tentar o impossível. Há estudiosos que comunicam a impressão errônea de que nada de importante ocorreu na vida da Igreja desde a paixão, morte e ressurreição de Cristo. A Igreja é introduzida como o corpo místico de Cristo, erigida, por assim dizer, sobre pedestal de intocabilidade, e aí deixada em contemplação beatífica, enquanto o curso da História rola a seus pés.
A presença mesmo da Igreja no mundo hoje é evidência de que após dois milênios ainda não completou sua missão. Compare o leitor este fato com o tom jubilante de Paulo ao ver igrejas surgindo com vitalidade onde quer que o evangelho fosse pregado. Para o apóstolo, pareceia como se a consumação do plano divino pudesse ocorrer num futuro não muito distante, uma vez que o cumprimento do sinal mais importante anunciando o fim – “será pregado este evangelho do reino por todo o mundo” – parecia-lhe ao alcance da mão.
A história da apostasia da Igreja, explica, como mais nada poderia fazê-lo sua permanência neste mundo depois de tantos séculos.
Extraído do Livro “O Despontar de Uma Nova Era” de S. Júlio Schwantes – CPB 1984.