Uma das objeções mais frequentes ao ensino veterotestamentário de um Deus justo e amoroso é sua ordem, quando Josué entrava em Canaã com os israelitas, de exterminar da face da terra todos os homens, mulheres e crianças pertencentes às sete ou oito nações cananeias presentes na terra. Para muitos, o ensinamento bíblico acerca da justiça e misericórdia de Deus é posto à prova a partir do momento em que Deus exige tamanha condenação maciça e universal de todos os habitantes de Canaã, quando da chegada de Israel.
Isso não quer dizer que Israel era tão superior moralmente que podiam atirar as primeiras pedras. Ronald Goetz afirmou com certa razão que “Israel recebe ajuda apesar de seus pecados”[1]. Porém, conforme o próprio Goetz observou, a resposta não está na retidão imensamente maior de Israel em relação aos cananeus, mas nos níveis crescentes de culpa acumulados por Canaã ao longo de anos e milênios, antes da época da conquista de Josué. Portanto, sem tentar mitigar ou atenuar a ordem divina de extirpar a população de Canaã, o texto que coloca em perspectiva toda essa questão é Deuteronômio 9.5:
“Não é por causa da tua justiça nem da retidão do teu pecado que entras na terra delas para possuí-la, mas é pela culpa destas nações que o Senhor, teu Deus, as expulsa da tua frente, para confirmar a palavra que o Senhor, teu Deus, jurou a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó.”
Durante todo o período dos patriarcas, da escravidão egípcia, e muitos anos adiante, Deus aguardou que os cananeus se arrependessem e abandonassem os pecados gradativamente acumulados contra si mesmos. Gênesis 15.16 deixa claro que, mesmo no período de 2100 a 1800 a.C., seria prematuro Abraão, Isaque e Jacó tomar alguma atitude, com base na promessa de Deus, invadindo Canaã e capturando-a para si próprios, “porque a medida da maldade dos amorreus ainda não [estava] completa”. Nosso Senhor aguardava que o “cálice de iniquidade” enchesse até a borda e transbordasse.
A misericórdia, graça e amor de Deus fizeram com que ele agisse extremamente devagar ao executar sua ameaça de julgamento contra Canaã. Deve-se lembrar que todas as profecias (exceto as de caráter incondicional, dentro dos esquemas da aliança abraâmica, davídica e da nova aliança) têm explícita ou implicitamente um “a menos que” ou “se” e, por isso, são condicionais nas ameaças que levantam contra as nações. “Se” Canaã se arrependesse em qualquer momento ao longo daquele período que teve início na constatação de Noé das perversões sexuais de seu neto Canaã, à semelhança do que demonstrava seu filho Cam (Gn 9.25), Deus teria mudado sua acusação contra aquela nação (Jr 18.7-10). Não temos como datar o dilúvio de Noé, mas, ainda que fosse por volta de 3500 a.C. – e Deus vigiou Canaã desde aquela data até aproximadamente 1400 ou 1300 a.C. –, Deus teria esperado mais dois milênios antes de ordenar a Josué que destruísse os habitantes daquela terra.
Deus não corrompe a justiça (Jó 8.3), mas, sendo o Juiz de toda a terra, faz o que é justo (Gn 18.25). O problema gira em torno da legitimidade e significado da ira divina (ira Dei). É costumeiro os seres humanos, mortais, definirem ira ao estilo ao estilo de Aristóteles, como “o desejo por retaliação”[2], ou como a ardente necessidade de retribuir ao mínimo ou real dano causado contra nós. Há quem tenha definido ira como “loucura momentânea”[3], mas foi o pai da igreja Lactâncio (segunda metade do século III d.C.) quem a definiu como “comoção da alma se insurgindo para refrear o pecado”[4].
No século II da era cristã, argumentos de Marcião contra o Deus do Antigo Testamento, considerando-o como um “demiurgo” (divindade subordinada responsável pela criação do mal), obrigaram a igreja a excomungar Marcião em 144 d.C. Tertualiano escreveu seu Contra Marcião com o objetivo de responder a diversas das objeções marcionistas ao Deus do Antigo Testamento. Contudo, foi a partir de De Ira Dei (“Sobre a ira de Deus”), de Lactâncio, que se começou a responder e entender corretamente as passagens concernentes à ira de Deus. Lactâncio escreveu:
“Quem ama o bem, por isso mesmo odeia o mal; e quem não odeia o mal não ama o bem; pois o amor da benignidade advém diretamente do ódio do mal, e o ódio de coisas más advém diretamente do amor da benignidade. Ninguém pode amar a vida sem abominar a morte; e ninguém pode ter apetite pela luz sem antipatia às trevas.[5]”
A ira e a cólera de Deus são expressões legítimas de sua abominação a tudo o que é pecaminoso, errado, injusto, e contrário a sua natureza e ser. Deus não irrompeu em ira por mera impetuosidade contra os cananeus, mas deu-lhes séculos e milênios para que acertassem e corrigissem seus erros. No fim das contas, ele teve de agir; caso contrário, não seria santo, justo correto e equânime[6].
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[1] Ronald Goetz, “Joshua, Calvin and Genocide”, Theology Today 32 (1975): 266.
[2] Aristóteles, De Anima 1.1. Ver a excelente discussão sobre o assunto em Abraham Heschel, The Prophets. Nova Iorque: Harper and Row, 1962, 2:1-86, esp. 60.
[3] Horácio, Epistolae 1:2:62. Ver também J. C. Hardwick, “The Wrath of God and the Wrath of Man”, The Hibbert Journal 39 (1940-1941): 251-261.
[4] Citado por Heschel, The Prophets, 2:82.
[5] Lactâncio, De Ira Dei, 51.
[6] Ver quatro pontos de vista sobre o assunto em Show Them No Mercy: Four Views on God and Canaanite Genocide, ed. Stanley Gundry. Grand Rapids: Zondervan, 2003 [publicado em português com o título Deus mandou matar? 4 pontos de vista sobre o genocídio cananeu. São Paulo: Vida, 2006]. Os defensores de cada perspectiva são C. S. Cowles, Eugene H. Merrill, Daniel L. Gard e Tremper Longman III.