O GRANDE DESAPONTAMENTO
Vinte e dois de outubro de 1844. À medida que os ponteiros do relógio se aproximam das 24 horas, corações ansiosos aceleram. “Deve ser à meia-noite… só pode ser!” Durante 14 anos Guilherme Miller pregara sua mensagem. Aproximadamente 50 mil pessoas em todos os Estados Unidos (que na época tinha uma população de 17 milhões) aceitaram-na.[*] O dia tão esperado chegara. Não havia dúvidas. As últimas horas haviam sido gastas em fervorosa oração e reestudo da Bíblia, para confirmação das datas anunciadas na profecia. O dia era este, sem dúvida. O dia tão esperado; o dia da segunda vinda de Jesus Cristo.
Dentre as pessoas que se uniram ao movimento Milerita, estava o pastor congregacionalista Carlos Fitch. Fitch, de trinta anos, também concordara com a mensagem de que Jesus voltaria no dia 22 de outubro, depois de ter estudado minuciosamente as profecias de Daniel e Apocalipse. Tornou-se, então, importante anunciador do advento e o primeiro ministro milerita.
Poucos dias antes de 22 de outubro de 1844, Fitch batizou três grupos sucessivos de conversos em um rio. A cerimônia, ao ar livre, num dia frio, fez com que o pregador adoecesse. Faleceu na segunda-feira, 14 de outubro, vítima de tuberculose.
– Mamãe, nós veremos papai novamente? – perguntam os dois filhos do pastor, em meio às lágrimas, após o funeral.
– Sim, queridos – responde corajosamente a Sra. Fitch. – Em poucos dias, quando Jesus voltar, Ele despertará papai e seus irmãos adormecidos também, e então seremos uma família completa e feliz outra vez, para sempre!
Os dias transcorrem cheios de expectativa. Na noite de segunda-feira, 21 de outubro, as crianças tornam a perguntar:
– Mamãe, amanhã vamos nos encontrar com papai?
– Sim, queridos! – diz ela olhando esperançosamente para o céu.
Carlos Fitch
Havia muitas famílias como essa naqueles dias. Gente esperando rever os filhos que tinham morrido de tuberculose, cólera, tosse comprida e outras doenças fatais. Milhares antecipando a alegre reunião quando Jesus viesse novamente.
Mas a manhã do dia 22 passou. A tarde, também.
Na pequena vila de Washington, no Estado de New Hampshire, havia uma igrejinha branca. Pertencia à Sociedade Cristã, cujos membros aceitaram a pregação de Guilherme Miller e outros homens sobre a volta de Cristo.
Em Low Hampton, no Estado de Nova Iorque, Miller, sua família e muitos amigos, reuniram-se numa formação rochosa, nos fundos de casa, para esperar Jesus.
O Sol já se havia escondido. A noite começara.
“Deve ser à meia-noite… Só pode ser!” Faltam apenas minutos para as 24 horas. Segundos, agora. Ao soarem as doze badaladas no relógio da cozinha, todos os olhares se voltam para o céu, aguardando o “sinal do Filho do homem” e… nada! Não é possível! O que aconteceu? Lágrimas começaram a rolar pela face de milhares de pessoas. Vinte e dois de outubro havia terminado. Jesus não viera.
Da varanda de sua casa a Sra. Fitch ainda olha para o céu. A lua ilumina-lhe os olhos cheios d’água. Quase não nota uma pequena mão tocar a sua:
– Mamãe, por que papai não veio?
“O Sol ergueu-se no oriente, ‘como um noivo que sai de seus aposentos’. Mas o Noivo não apareceu.
Permaneceu no meridiano, quente e comunicador de vida, ‘trazendo salvação nas suas asas’. Mas o Sol da Justiça não apareceu.
Escondeu-se no ocidente, flamejante, cruel, ‘terrível como um exército com bandeiras’. Aquele que Se assenta sobre o cavalo branco não retornou como o Líder das hostes celestiais.
As sombras do ocaso estendiam-se serena e friamente por sobre a terra. As horas da noite passavam vagarosamente. Em desconsolados lares de mileritas, os relógios assinalaram doze horas da meia-noite. Vinte e dois de outubro havia terminado. Jesus não viera. Ele não voltara!” – História do Adventismo, pág. 34.
Guilherme Miller foi um dos responsáveis pelo despertamento religioso do século 19
(*) Outras fontes afirmam que cerca de 100 mil pessoas aceitaram a mensagem adventista. A revista Readers’ Digest, de abril de 1913, p. 53 e 54, no artigo intitulado “E o dia do juízo não veio”, afirma que havia um milhão de espectadores do “grande dia”.
O AVANÇO DA MENSAGEM
“E a voz que eu do céu tinha ouvido tornou a falar comigo e disse: Vai, e toma o livrinho aberto da mão do anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra. E fui ao anjo, dizendo-lhe: ‘Dá-me o livrinho.’ E ele me disse: ‘Toma-o, e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como o mel.’ E tomei o livrinho da mão do anjo, e comi-o; e na minha boca era doce como o mel; e, havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo.” Apocalipse 10:8-10.
Os mileritas viam o “livrinho” como símbolo das profecias de tempo do livro de Daniel que haviam sido inadequadamente compreendidas até seu próprio tempo, mas que, durante o grande despertar do segundo advento, foram proclamadas por um movimento profético intercontinental, representado pelo anjo com um dos pés no mar e outro na terra (Apocalipse 10:2).
Sem dúvida, anunciar a vinda de Jesus era algo “doce como o mel”. Mas, em sua felicidade, eles deixaram de compreender as outras palavras: “Havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo.” Na manhã do dia 23 de outubro de 1844, essas palavras não mais pareciam incompreensíveis. “Pude ver que a visão havia falado e não mentira. … Tínhamos comido o livrinho; havia sido doce em nossa boca e agora tornara-se amargo em nosso ventre, amargando todo o nosso ser”, escreveu Hiran Edson.
“Assim, o grande desapontamento de 22 de outubro de 1844 havia sido predito quase dois mil anos antes! Longe de desacreditar o despertamento adventista, serviu para comprová-lo como um genuíno cumprimento da profecia!”[1] “Com o Seu ‘braço forte’ Deus libertou o povo de Israel do jugo faraônico e o guiou através do deserto à terra prometida; suscitou João Batista para conduzir na Judéia uma obra precursora, anunciando o advento do Messias; iluminou a mente dos reformadores que precipitaram a revolução religiosa do século XVI, e através dos tempos, preparou o cenário para o surgimento do movimento adventista.”[2]
Depois do grande desapontamento, os fiéis sinceros voltaram à Bíblia e, examinando-a, recobraram ânimo e renovaram a esperança ao ler o texto de Habacuque 2:3: “Porque a visão é ainda para o tempo determinado, e até ao fim falará, e não mentirá. Se tardar, espera-O; porque certamente virá, não tardará.” E Apocalipse 10:11 resumia agora a missão dos “remanescentes”: “Importa que profetizes outra vez a muitos povos, e nações, e línguas e reis.”
Milhares que participaram da amarga experiência de 1844, desalentados, voltaram às suas igrejas de origem ou continuaram a marcar outras datas para a vinda de Cristo. Outros, que haviam entrado para o movimento apenas por algum interesse particular, abandonaram a causa por completo. Porém, outro grupo resolveu voltar à Bíblia em busca de respostas. E na Palavra de Deus encontraram o conforto necessário para suportar as críticas e a zombaria de um mundo irreverente e escarnecedor. “Muitas vezes” – escreveu Ellen G. White, uma das fundadoras da Igreja Adventista – “ficamos juntos até tarde da noite, e por vezes durante a noite inteira, orando por luz e estudando a Palavra.”
Por manter suas idéias adventistas, este grupo acabou sendo expulso de das igrejas de origem. Assim, “os pioneiros adventistas não começaram um movimento religioso animados pelo simples propósito de introduzir uma nova dissidência no seio do cristianismo. Não se inspiraram na orientação teológica ou carismática de um homem. Sentiram-se integrantes de um movimento profético suscitado pela mão de Deus para proclamar dentro do contexto do ‘evangelho eterno’ a chegada da ‘hora do juízo’”.[3]
Os anos posteriores demonstraram a importância da liderança de três pessoas em especial no movimento: o casal Tiago e Ellen White, e José Bates. Os White iniciaram a obra de publicações, em Rochester, Nova Iorque. O ex-capitão José Bates redescobriu um mandamento bíblico há muito esquecido pela cristandade: o sábado do sétimo dia como dia de repouso. Posteriormente, em 1863, os adventistas (agora Adventistas do Sétimo Dia) adotaram a Reforma Pró-Saúde, abstendo-se do fumo, álcool, carnes imundas (como a do porco – ver Levítico 11) e de tudo que prejudica o “templo do Espírito Santo” – o corpo humano.
O casal White e o capitão Bates: líderes do movimento nascente
O passo seguinte foi obedecer às palavras de Jesus em Marcos 16:15: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.” Conscientes disso, os adventistas passaram a proclamar pessoalmente, em conferências públicas ou através de publicações, suas convicções religiosas: Jesus como único Salvador pessoal; a volta de Cristo como única solução para um mundo em degeneração; a imortalidade condicional do ser humano; a aceitação da Bíblia como única regra de fé e prática; a Lei de Deus como única ética de conduta; o sábado como único dia santificado; e a reforma de saúde para uma vida mais digna e melhor comunhão com o Criador. E foi justamente esse contagiante entusiasmo por promover a saúde e, posteriormente, construir hospitais difundindo os princípios de uma medicina preventiva, que despertou a admiração de muitas pessoas e abriu portas para a pregação do evangelho.
“Podemos esperar que uma igreja que aguarda o fim do mundo a qualquer momento concentre a atenção exclusivamente em assuntos religiosos. É o que acontece com [certas denominações], que não possuem hospitais, asilos, orfanatos e clínicas. Seu único interesse parece ser advertir a humanidade da iminente batalha do Armagedom. Não assim os adventistas. Sua crença na Segunda Vinda não arrefeceu seu empenho em favor da educação, do cuidado médico ou do serviço em prol de outros. Nenhuma igreja pode apresentar mais impressionante relatório de serviço médico do que os adventistas do sétimo dia, levando-se em conta o número total de seus adeptos”, escreveu Willian J. Whiler, professor de História da Universidade Católica de Pardue, Estados Unidos.[4]
Com a lembrança do grande desapontamento ficando para trás, as pessoas tornavam-se cada vez mais receptivas à mensagem adventista. Em meados da década de 1850, tendas evangelísticas foram erguidas num Estado após outro. Centenas, e mesmo milhares, aglomeravam-se para ouvir Loughborough, White, Andrews, Cornell, Waggoner, Sanborn, Taylor, Hull e outros pregarem a Palavra. Mas, mesmo que pregassem às multidões desde o Maine até Minnesota, dificilmente cumpririam a ordem de Cristo de levar o evangelho ao mundo inteiro.
Assim, em 1855, José Bates animou os irmãos na fé a remeter literatura a algumas estações missionárias estrangeiras. João Fischer, ex-ministro batista, chegou a traduzir um folheto para a língua holandesa. Mas só em 1874 um missionário adventista foi enviado para terras além-mar.
John Nevins Andrews foi o escolhido. Profundo conhecedor de grego e hebraico, Andrews era capaz de ler a Bíblia em sete línguas diferentes, além de saber de memória todo o Novo Testamento. Tinha apenas 15 anos quando passou pela amarga experiência do desapontamento. Sem se deixar vencer pelo desânimo, entretanto, continuou a estudar a Bíblia, até que um folheto de Nova Iorque, escrito por Hiran Edson, explicando o erro cometido quanto ao evento que teve lugar em 22 de outubro de 1844, trouxe de volta o ânimo à família do jovem Andrews.
Quando John estava com 17 anos, teve de tomar uma decisão que definiria por completo sua vida. Seu tio Carlos, homem rico que havia prosperado na carreira política e era membro do Congresso Nacional, fez-lhe uma visita e uma proposta. Ele e sua esposa Hanna não tinham filhos e se haviam afeiçoado muito ao sobrinho, um rapaz inteligente e brilhante.
– Que prazer ver você novamente! – diz o tio Carlos. – Você está agora com 17 anos, não é verdade? Quais são os seus planos para o futuro?
– Desejo ser um pastor e pregar o evangelho – responde Andrews. O tio Carlos faz uma expressão de desagrado.
– John, é certo o que tenho escutado sobre você, que está guardando o sábado, como os judeus? Você quer tornar-se um pastor para pregar essa doutrina?!
– Tio Carlos, uma vez que estou convencido de que o sétimo dia da semana é o verdadeiro dia de repouso, estou determinado a pregá-lo em todas as partes aonde eu puder ir.
– Veja, John, eu tenho algo muito mais importante para sugerir-lhe. Você é um jovem inteligente, deve estudar Direito e entrar na carreira política. Este é um brilhante futuro. Pode escolher a universidade que desejar e pagarei todas as suas despesas. Ademais, estou ficando velho e, quando você terminar seus estudos universitários, estarei me aposentando e você poderá substituir-me no cargo que ocupo.
Houve um momento de silêncio. A oferta era tentadora e John apreciava muito os estudos. Pediu um momento para pensar.
– Está bem, John. Tão logo você tenha decidido, escolha a universidade – Harward, Dartmouth ou Yale – e tratarei de conseguir sua admissão. Pagarei os custos e também lhe comprarei roupas e os livros que precisar.
O tio se retirou deixando Andrews pensativo. Mas a decisão do jovem já havia sido tomada. Serviria a Deus aonde quer que Ele o mandasse, e teria todo o apoio dos pais.
Em 1874, durante a assembléia da Associação Geral dos adventistas, em Battle Creek, Michigan, a decisão de enviar o Pastor Andrews como missionário à Europa foi aprovada pelos delegados. Andrews não ficou muito animado; com a morte de sua esposa Angelina, em 1872, desempenhava o papel de pai e mãe de seus dois filhos Carlos e Maria. Hesitava deixar seu recanto tranqüilo próximo à escola, onde os filhos iam bem nos estudos. “Mas logo sentiu uma estranha transformação em suas emoções. Seu rosto brilhava quando ele se pronunciou aceitando ir a qualquer lugar aonde o Senhor o enviasse.”[5]
No dia 15 de setembro de 1874, John Andrews e seus filhos, juntamente com Ademar Vuilleumier, embarcaram no navio Atlas, rumo à Inglaterra. Ademar seria o tradutor e professor de francês dos Andrews.
Pouco tempo depois de estabelecidos no novo Continente, os Andrews já publicavam Les Signes des Temps (Sinais dos Tempos). Quando tinha o material pronto, entregava-o a Maria para ser corrigido. Com 14 anos, Maria dominava o francês e ajudava o pai em seu trabalho editorial. Andrews precisou ainda estudar, além do francês, o alemão e o italiano, para desempenhar seu trabalho.
No início de 1878, Andrews olhava com esperança o futuro. Havia agora adventistas na Inglaterra, Escócia, Irlanda, Egito, Noruega, Suécia, Dinamarca, Holanda, Alemanha, Rússia, França e Itália. “A verdade continua avançando. O Senhor voltará em breve. Nossos dias de luto logo terminarão. Continuamos trabalhando e labutando na esperança da vida eterna”, escreveu.
Realmente, a mensagem avançava. Mais e mais missionários foram enviados. Milhares de folhetos e livros foram espalhados como “folhas de outono”. Turquia, China, África, as ilhas do Pacífico, Índia, Austrália, América do Sul… Em cada “nação, tribo, língua e povo” a mensagem adventista lançava suas raízes.
Até que em 1884 o adventismo chegou ao Brasil. De forma não menos providencial.
EM TERRAS TUPINIQUINS
Enquanto, em 1860, os pioneiros adventistas na América do Norte entendiam que a mensagem do advento devia somente ser pregada nos Estados Unidos – pois aquele país era composto de gente de quase todas as nações – no Brasil era fundada a Colônia de Brusque. A maioria dos imigrantes que se estabeleceram nessa região de Santa Catarina vieram da Alemanha (de Baden, Holstein, Oldenburg e Prússia), posteriormente, chegaram colonos italianos e poloneses.
A imigração de alemães em grande escala, no século 19, coincidiu com o período de grandes crises que antecederam à unificação da Alemanha sob a hegemonia da Prússia, a partir de 1871. As causas dessa imigração foram tanto políticas quanto econômicas. Além do mais, intensa propaganda era feita pelas Companhias de Colonização de alguns países interessados em atrair imigrantes.
As grandes levas de imigrantes alemães entraram no Brasil entre 1850 e o final do século (São Leopoldo, no Vale dos Sinos gaúcho, foi o ponto de partida dessa saga iniciada em 1824, com a fundação da primeira colônia de imigrantes alemães no país, então recém-emancipado de Portugal). Mas foi só em quatro de agosto de 1860 que a Colônia de Brusque iniciou sua história, com o desembarque dos primeiros colonos às margens do Itajaí-Mirim. O rio se tornaria uma testemunha muda do início de uma nova vida para os colonos alemães, assim como, 35 anos mais tarde, seria palco de um “novo nascimento” para os primeiros conversos ao adventismo em Santa Catarina.
Os colonos vieram iludidos. A propaganda na Alemanha não lhes dava a mínima informação das reais condições de seu novo “lar”. Dizia, sim, que eles encontrariam um paraíso subtropical onde todos seriam proprietários de terras. Estavam totalmente despreparados para explorar um lote de terras coberto de floresta e isolado em ampla área despovoada. Esse despreparo dizia respeito a tudo: nada sabiam das técnicas agrícolas adequadas, do equipamento necessário ao desmatamento e plantio, dos tipos de roupas adequadas à região ou mesmo da inexistência de animais domésticos. Na administração da Colônia é que recebiam um machado, uma enxada e um facão ou uma foice.
Com muita coragem e determinação, foram transformando o ambiente. “É o burburinho do trabalho humano que enche o silêncio da mata. É o ruído das ferramentas que levantam ranchos para os povoadores. É o grito dos homens na animação do trabalho, a voz das mulheres que se ajudam e discutem os problemas comuns, são o choro e o riso das crianças que invadem o ritmo musical da natureza. A face da terra se transforma – apenas o rio continua a correr, embora as suas águas devessem ser, daí por diante, cortadas mais freqüentemente pelas canoas, pois continuaria a ser, por longo tempo ainda, a única via de comunicação do núcleo que iniciava a sua vida com o resto do mundo, a única estrada aberta pela natureza, para o contato com o centro, representado pela Vila do Santíssimo Sacramento do Itajaí”, escreveu Oswaldo R. Cabral, no livro Brusque – Subsídios para a história de uma colônia nos tempos do Império, nas páginas 8 e 9 (1958).
Nos anos seguintes, o ritmo do trabalho não mais cessaria. O horizonte seria alargado com a derrubada das matas. As colinas mostrariam as feridas abertas pelas ferramentas humanas e as plantações pouco a pouco surgiriam.
A Vila de Brusque é importante para caracterizar a comunidade camponesa do Vale do Itajaí-Mirim, no fim do século 19. Basicamente era um aglomerado com aparência semi-urbana, inserido na área colonial. Não se assemelhava nem um pouco às aldeias camponesas alemãs do século 19, mas, a exemplo delas, um forte laço de coesão social unia as propriedades individuais num grupo territorial muito bem definido – a Colônia. E, se havia lugares em que os colonos mantinham suas atividades sociais e econômicas com outras pessoas, eram as vendas.
Esses estabelecimentos comerciais ocupavam posição de destaque, não tanto pelo volume do comércio, mas pelo fato de serem pontos de reunião para os vizinhos, o local das conversas, da vida social, da venda e troca de mercadorias e da entrega de correspondência.
Nessa Stadtplatz (como os colonos chamavam a Vila de Brusque), havia uma venda que se tornaria muito especial. Pertencia ao Sr. Davi Hort, comerciante vindo da Alemanha. Nela, no início do ano de 1884, a mensagem adventista chegaria pela primeira vez ao Brasil.
Vila de Brusque no início do Séc XX
** OS PRIMEIROS IMPRESSOS
A poeira que se eleva quase impossibilita a identificação do par de brigões. Um grupo de homens já forma um círculo em torno dos dois corpos suarentos que se contorcem no chão. Afinal, era o tipo de acontecimento que servia para quebrar a monotonia da Vila de Brusque.
– Vai lá! Quebra a cara dele! – animam alguns.
Borchardt, o mais jovem, leva vantagem sobre o oponente. Num giro rápido de corpo, coloca-se sobre o adversário imobilizando-lhe os braços. Grossas gotas de suor escorrem-lhe da testa, molhando a face avermelhada de raiva. Os olhos parecem-lhe saltar das órbitas.
– Deixa pra lá, Borchardt… Não vale a pena brigar por isso! – diz um senhor de meia-idade, tentando acalmar os ânimos.
Borchardt levanta o punho, hesita por um momento, mas, não dando ouvidos ao conselho, dá um forte soco no rosto do adversário.
Não havendo reação por parte do homem, Borchardt se levanta com alguma dificuldade, sacode a poeira da roupa e arruma os cabelos despenteados. O círculo fecha-se mais, enquanto o grupo de homens observa o corpo imóvel no chão. De repente, quebrando o silêncio, alguém comenta:
– Acho que ele está morto.
Um calafrio percorre a espinha do jovem alemão que, sem dizer uma palavra, sai correndo em direção à casa do padrasto Carlos Dreefke. Temendo que a polícia pudesse persegui-lo, Borchardt evita a picada principal, e toma um atalho não muito utilizado.
Uns cinco quilômetros depois, o jovem ofegante chega à rústica casa do Sr. Dreefke. Àquela hora ninguém se encontrava em casa; estavam todos na roça ou talvez no engenho. Não havia tempo para comunicar ao Sr. Dreefke. Assim, Borchardt apanha alguns mantimentos e roupas para dirigir-se ao porto de Itajaí, distante 40 quilômetros. Seria dura e longa a caminhada.
Sem nenhum dinheiro no bolso (naquele tempo – fim do século 19 – as transações comerciais com os vendeiros eram feitas na base da permuta), Borchardt inicia a viagem mata adentro. Os únicos caminhos até a Vila de Itajaí eram uma pequena estrada aberta pelos arrastadores de madeira para as serrarias ou através do rio, em pequenas embarcações. Borchardt opta pela estrada pois não quer arriscar contato com alguém que possa reconhecê-lo.
Dias depois, transpondo montanhas e dormindo na mata, chega ao seu destino, totalmente exausto e faminto. No porto, Borchardt fica sabendo da partida de um navio rumo à Alemanha. Sem pensar duas vezes, entra sorrateiramente na embarcação, escondendo-se entre a carga.
Quando o verde vale do Itajaí já havia desaparecido no horizonte, o capitão encontra Borchardt dormindo entre algumas caixas. Depois de alimentado, o jovem explica sua situação ao capitão que, sem outra alternativa, obriga-o a trabalhar para pagar a passagem.
Os dias transcorrem calmamente. Certa manhã, no fim da viagem, Borchardt percebe a aproximação de dois senhores bem vestidos e sorridentes.
– Bom dia, senhor! Você vem do Brasil, não? – pergunta um deles, em alemão.
– Sim… da província de Santa Catarina – responde Borchardt, desconfiado.
O outro senhor estende-lhe a mão e diz:
– Nós somos missionários adventistas. Gostaríamos de saber se há algum evangélico em sua terra.
Vendo que não há o que temer, Borchardt prossegue.
– Bem, o meu tio é luterano.
– Ótimo. Você poderia nos fornecer o endereço dele? Temos interesse em mandar literatura religiosa para o Brasil.
Alguns meses depois, uma pequena embarcação vinda de Itajaí deixa seu carregamento em Brusque: algumas caixas com utensílios de agricultura, correspondência para a administração da vila e um pequeno pacote endereçado ao Sr. Carlos Dreefke, com selo de Battle Creek, Michigan, Estados Unidos.
Porto de Itajaí, Santa Catarina: portão de entrada da mensagem adventista no Brasil.
RECEBENDO A MENSAGEM
O ano novo não começara nada bem. As chuvas constantes ameaçavam as plantações e tornavam desgraçadamente previsível uma nova cheia do rio Itajaí-Mirim.
Na Kaufläden (venda) do Sr. Davi Hort – um típico casarão colonial de dois pavimentos, a cerca de oito quilômetros do centro atual de Brusque – o comerciante conversa com alguns colonos.
– Sr. Hort, o senhor sabe como as chuvas têm dificultado as colheitas neste ano. Não temos muita mercadoria excedente para trocarmos, mas precisamos de novas ferramentas e alguns mantimentos…
A venda facilitava o comércio em pequenas quantidades. O colono vendia ou trocava seus produtos agrícolas e voltava para sua propriedade levando bens de consumo para uso da família. Servia, ao mesmo tempo, como local de armazenagem de produtos agrícolas e como ponto de distribuição de mercadorias não produzidas na área. O colono deixava na venda uma parte da produção agrícola do seu lote e levava sal, toucinho, ferramentas, óleo, tecidos e armas. Os colonos chamavam a isto de trok (adaptação do termo português “troca”), pelo fato de que não entrava dinheiro na transação.
– Bem, não posso fazer muito por vocês – diz Davi Hort, coçando a barba, enquanto se apóia com os dois cotovelos sobre o balcão de madeira. – Os produtos tiveram um aumento de preço na Vila de Itajaí e eu não posso sair em prejuízo. Mas me digam: vocês não trouxeram fumo ou banha?
– Muito pouco, Sr. Hort. Como lhe dissemos, a colheita neste ano não tem sido como esperávamos.
Dentro das pequenas propriedades, os colonos também se dedicavam a um cultivo puramente comercial: o fumo, que se destinava ao mercado, sendo apenas uma pequena parte consumida no local. Por outro lado, parte da produção agrícola chegava às vendas indiretamente. Milho, inhames e aipim eram utilizados para alimentar os porcos que, transformados em banha, constituíam uma das mais importantes fontes de renda do colono. Os verdadeiros excedentes da produção camponesa estavam, pois, reduzidos a dois artigos: o fumo e a banha. O cultivo do fumo, contudo, não foi nunca atividade agrícola mais importante do que as outras. O colono não deixava de cultivar milho, mandioca e outros produtos necessários à sua subsistência para se dedicar à agricultura comercial, embora essa significasse, muitas vezes, dinheiro vivo. O fumo era praticamente o único artigo que os vendeiros pagavam em dinheiro.
As vendas principais ficavam na sede da colônia. Outras, de importância secundária, localizavam-se nos entroncamentos de picadas e tinham mais características de entreposto de trocas. Na prática, esses vendeiros eram intermediários dos vendeiros da sede mais do que comerciantes independentes; também colonos, tinham, como atividade suplementar, pequenas vendas. Nelas se encontravam alguns produtos de maior necessidade (alimentos e pequenas ferramentas); para qualquer transação comercial maior, era necessário ir à vila.
Bem ou mal, o colono dependia do vendeiro. A colônia estava isolada, longe de qualquer centro urbano. Qualquer deslocamento, mesmo para um centro comercial mais próximo (no caso, o porto de Itajaí), demorava de uma semana a 15 dias. O colono não tinha condições de se afastar tanto tempo de suas plantações, ainda mais pelo fato de dedicar todo o tempo que restava aos “serviços acessórios” (como o corte de árvores). Por outro lado, para levar a mercadoria pessoalmente até Itajaí necessitava ter pelo menos bons animais de carga, sujeitando-se a viajar numa picada em péssimas condições, ou dispor de uma embarcação. Praticamente nenhum pequeno proprietário da região colonial tinha condições para isso. Deste modo, os comerciantes é que ditavam as regras.
– O que eu posso fazer – continua o Sr. Davi – é vender fiado o que vocês precisam. Depois a gente negocia a melhor forma de pagar a dívida.
Georg Friedrich Adolfo Hort, de 11 anos, filho mais novo do casal Davi e Anna Dorothea Elizabeth Stalenburg Hort, acompanha a conversa com muita atenção, sentado sobre algumas sacas de feijão. Apesar da pouca idade, Adolfo sabe que a dívida daqueles homens dificilmente poderá ser paga. Os colonos também sabem. Mas era um círculo vicioso do qual dificilmente podiam escapar. Como o excedente da produção de cada família era pequeno, ao ser saldada uma dívida, uma nova era contraída.
Os colonos ainda discutem as condições do acordo, quando entra um garoto, vestindo uma velha capa de chuva e tendo nos braços um pacote de forma retangular. Por um momento, todos ficam quietos, aguardando as palavras do rapaz.
– “Seu” Davi, mandaram-me trazer esta encomenda para cá. É para o Sr. Dreefke.
Carlos Dreefke (padrasto do fugitivo Borchardt), como quase todos os colonos daquela época, tinha a sua pequena propriedade da qual vivia. Providencialmente, encontrava-se na vila naquela manhã chuvosa de verão, fazendo negócios com os vendeiros da região. O Sr. Davi Hort já o havia visto passar em frente ao seu estabelecimento e, curioso para conhecer o conteúdo do pacote, diz ao garoto:
– Faça-me um favor, rapaz: procure o Sr. Dreefke, ele deve estar aqui por perto.
O garoto, satisfeito pela nova “missão” e, talvez, esperando alguma pequena gratificação, recoloca o capuz de couro e sai às ruas enlameadas. Minutos depois, volta à loja acompanhado de Carlos Dreefke. Além de Hort e seu filho, havia mais uns oito homens na casa; todos aguardando ansiosos.
– Guten tag, Sr. Hort. Como vão vocês? – pergunta Dreefke educadamente – Mandou-me chamar?
– Sim. Chegou uma encomenda para o senhor. O selo diz que é dos Estados Unidos… – o Sr. Davi aponta o dedo para o pacote a um canto do balcão – Ali está.
– Encomenda para mim?! Dos Estados Unidos?! Creio que há um engano aqui. Não fiz nenhuma encomenda!
– Mas não existem dois Carlos Dreefke nesta região! – diz um dos colonos.
– Desculpem-me, mas não posso abrir este pacote. E se eu tiver de pagar? E se for uma cilada…
– Cilada?! – interrompe o Sr. Davi. – Ora, homem! O que pode haver de mal num simples pacote? Além do mais, o selo já está pago. O que você tem a perder?
Relutante, o Sr. Dreefke se aproxima do embrulho. Os homens o animam a abri-lo. O pequeno Adolfo também se aproxima, com os olhos brilhando de curiosidade. Dreefke começa a rasgar o papel lentamente, faltando pouco para um dos homens tomar a frente e terminar o serviço. A curiosidade domina a todos.
Instantes depois, o conteúdo do pacote vem à luz: dez belas revistas com a inscrição de capa Stimme der Warheit (A Voz da Verdade). Dreefke espanta-se mais ainda. “Quem poderia ter-me enviado estas publicações? Quem saberia o meu endereço e meu nome?” As dúvidas se multiplicavam.
Pegando uma das revistas para si, Dreefke distribui as demais aos outros homens. Meio decepcionados, os colonos guardam o presente – as páginas que mais tarde dariam início a uma verdadeira transformação de mentes e corações.
Casa comercial onde foi aberto o primeiro pacote de literatura adventista no Brasil, em 1884
COMO FOLHAS DE OUTONO
Carlos Dreefke e os outros colonos que assistiram à abertura do pacote na venda de Davi Hort levaram suas revistas para casa.
Helmut – um dos colonos – e a esposa Herta, ambos fiéis luteranos, resolveram conferir o conteúdo daquela publicação. Em 1884 não havia muito o que se ler naquela região, ainda mais na língua alemã.
– Helmut, escute isto: “A segunda vinda de Cristo é a bendita esperança da Igreja, o grande ponto culminante do Evangelho. A vinda do Salvador será literal, pessoal, visível e universal. Quando Ele voltar, os justos falecidos serão ressuscitados e, juntamente com os justos que estiverem vivos, serão glorificados e levados para o Céu. Foi o próprio Jesus quem prometeu: ‘Não se turbe o vosso coração, credes em Deus, credes também em Mim. Na casa de Meu Pai há muitas moradas… vou preparar-vos um lugar… virei outra vez’ (João 14:1-3). E a Bíblia traz vários sinais que apontam para a proximidade desse grande dia. A maior parte desses sinais já se cumpriu ou está se cumprindo, o que significa que Jesus logo voltará. E o que você está fazendo? Ser neutro é impossível. Resta a alternativa: estar preparado para a volta de Jesus ou não. Prepare-se, então, pois agora você já está sabendo que muito em breve nosso amado Salvador e Amigo Jesus virá outra vez.”
– Herta… Como pode uma coisa dessas? – admira-se Helmut. – Como nunca ouvimos falar disso?
– Helmut, tenho a impressão de que estas revistas têm preciosas verdades a nos revelar.
Naquela noite, Helmut e Herta foram dormir pensativos. A intenção do casal era conseguir mais publicações adventistas, pois seu interesse havia sido despertado.
Davi Hort não deu muita atenção à revista que lhe coube; entretanto, sua esposa Anna Dorothea não se esqueceu da leitura. As chuvas de alguns anos atrás haviam feito transbordar o Itajaí-Mirim a ponto de destruir muitas plantações e propriedades. Aquilo deixara uma impressão profunda em sua mente, mas ela só aceitaria a mensagem adventista anos mais tarde, juntamente com o filho Adolfo.
Dez famílias acabaram se interessando pelas publicações adventistas e continuaram a pedir mais literatura, usando o nome do Sr. Dreefke que, com medo de que algum dia lhe mandassem a conta de todas as revistas, acabou cancelando os pedidos futuros.
A frustração foi geral. Quem poderia assumir agora a responsabilidade pelas revistas? Um polonês de nome Chikiwidowski chegou a se responsabilizar pelos pedidos, mas seu entusiasmo durou pouco. Foi então que uma terceira pessoa entrou na história: Frederich Dressler.
Dressler era filho de um pastor luterano na Alemanha. Foi expulso de seu país por ser alcoólatra. Aproveitando as correntes migratórias para o Brasil, veio parar em Brusque. Trabalhou como professor, mas toda a sua renda era gasta em bebida. Quando Dressler ouviu falar das tais revistas adventistas que eram enviadas de graça, resolveu fazer um pedido, com a intenção de vendê-las para alimentar o vício que o destruía.
As revistas (como a Hausfreund, “Amigos do Lar”) chegaram e, com elas, alguns livros. Entre eles, um muito especial: Gedanken Über das Buch Daniel (Comentário Sobre o Livro de Daniel). Após a leitura desse livro, Guilherme Belz se tornaria – anos mais tarde – o primeiro no Brasil a reconhecer o sábado como dia de descanso.
Em certas ocasiões, enquanto Dressler caminhava pelas ruas em busca de compradores, os folhetos caíam-lhe das mãos trêmulas. Como não havia muito papel espalhado pelo chão naquela época, as pessoas, curiosas, apanhavam os folhetos e os liam. Sem saber, Dressler prestou grande contribuição à causa adventista que ensaiava seus primeiros passos em terras brasileiras.
A Sociedade Internacional de Tratados dos Estados Unidos enviou centenas de dólares em literatura, que Dressler transformou em cachaça. Na venda de Davi Hort, Dressler trocava as revistas e folhetos diretamente por bebida. O Sr. Davi as usava como papel de embrulho. E foi dessa forma que a mensagem adventista conseguiu se espalhar mais e mais, como folhas de outono, alcançando famílias e corações nos quais a “semente da verdade” começara a germinar.
OS PRIMEIROS CONVERSOS
Guilherme Belz nasceu na Pomerânia, Alemanha, em 1835. Veio para o Brasil e se estabeleceu na região de Braunchweig (hoje Gaspar Alto), a cerca de 18 quilômetros de Brusque. Certa ocasião, ao voltar das compras na Vila de Brusque, notou algo de especial em uma das mercadorias. O papel de embrulho trazia um texto escrito em alemão. A leitura do impresso deixou Belz pensativo por várias semanas, até que, ao visitar o irmão Carl, descobriu que ele havia comprado um livro de Frederich Dressler – livro que “coincidentemente” tratava, dentre outras coisas, do mesmo assunto do folheto.
O Comentário Sobre o Livro de Daniel, de Uriah Smith, também estava escrito em alemão. Ao tentar pegá-lo da estante, Guilherme derrubou-o no chão. O livro se abriu justamente no capítulo intitulado: “O Papado Muda o Dia de Repouso”. Esse título fez Belz recordar sua juventude na Alemanha.
Nascido em uma família luterana, Guilherme tinha por hábito ler a Bíblia, mas algo o intrigava: “Se apenas o sábado é mencionado nas Escrituras, por que guardamos o domingo?” Sua mãe Luise e o pastor de sua igreja desconversavam e, por isso, a resposta teve que aguardar muitos anos.
Como estava com pressa, Guilherme despediu-se de Carl levando emprestado o livro – segurando-o como se houvesse descoberto um verdadeiro tesouro. Chegando em casa, ele investigou o assunto do sábado mais a fundo, comparando o conteúdo do livro com a sua Bíblia. Finalmente, Belz convenceu-se da santidade do sábado e de que a observância do domingo era, na verdade, apenas uma “tradição humana”. Guilherme tinha então 54 anos e tornava-se, assim, o primeiro a reconhecer, no Brasil, o sábado como dia do Senhor.
No sábado seguinte, sentado à mesa pela manhã, Guilherme não conseguia tomar o desjejum. Sua esposa Johanna, percebendo que ele parecia pálido e preocupado, perguntou-lhe:
– Querido, você não está comendo… Está doente?
– Estive estudando a Bíblia esta semana – respondeu Belz, levantando-se da mesa. – E sabe o que descobri? O sétimo dia, o sábado, é um dia especial, separado por Deus para adoração. Combinei de ir trabalhar com meus filhos no campo, mas sinto que não devo mais transgredir o dia do Senhor dessa maneira.
Tendo dito isso, Guilherme convidou a esposa e os filhos mais novos Guilherme, Elfride e Augusta para guardarem o primeiro sábado da vida deles. A família Belz começou a observar o sétimo dia em 1890. Entretanto, os três filhos mais velhos e já casados (Emília, Reinhold e Francisco) não aceitaram a “novidade” tão facilmente (Emília, a mais velha, jamais aceitou a mensagem adventista; mas seu filho mais velho, Leopold, posteriormente acabou se convertendo).
Guilherme e Johanna Belz: primeiros guardadores do sábado adventistas no Brasil
** OS DOIS MILAGRES
Francisco Belz já estava casado e morava não muito longe da casa dos pais. Fora convencido pelo pai da importância do sétimo dia, mas diante dos apelos para ser fiel, respondera:
– Minha esposa e eu somos muito jovens e temos muitos amigos e obrigações. Acreditamos não ser possível para nós observarmos o sábado.
Algum tempo depois, a jovem esposa Gerthrud ficou muito doente. Uma noite ela teve a impressão de que não viveria para ver o sol nascer. Deixando-a sob os cuidados dos sogros e dos vizinhos que estavam ali, Francisco retirou-se para o jardim, por onde fluía um pequeno rio. Ajoelhando-se à beira do riacho, ele abriu o coração a Deus:
– Senhor, eu e minha esposa estávamos planejando uma vida longa e próspera. Esperávamos passar muitos dias felizes neste mundo, e então recusamos obedecer aos Teus mandamentos. Mas subitamente a doença penetrou em nosso lar e a morte jaz à porta. Quão tolos fomos em depositar nossa confiança nesta vida![1]
Francisco confessou seus pecados e pediu perdão a Deus, prometendo servi-Lo daquele dia em diante, sendo fiel às Escrituras. Naquele momento, grande paz encheu-lhe o coração. Ele pôde sentir o amor do Salvador e teve a convicção de que sua esposa seria curada, se eles simplesmente se entregassem a Deus. Levantou-se, entrou na casa, foi até o leito de Gerthrud e disse:
– Querida, você não vai morrer, mas viver. Eu entreguei minha vida a Deus e prometi ser-Lhe fiel. Quero que você guarde o sábado comigo.
Gerthrud aceitou o convite do esposo e imediatamente foi curada, levantando-se da cama, sob os olhares admirados dos que ali estavam. Esse jovem casal permaneceu leal à promessa que fizeram. Anos depois, Francisco iniciaria seu trabalho como pastor missionário.
Francisco Belz e família. A doença e a cura de Gerthrud fizeram-nos abraçar a mensagem (em pé, à esquerda, Rodolpho Belz)
Não muito longe da casa de Francisco vivia outra família: os Olm. Assim como Guilherme Belz, Augusto Olm viera da Pomerânia para o Brasil em 1875, estabelecendo-se, também, em Gaspar Alto. A esposa de Augusto, Johanna, estava doente havia cinco anos, tendo que ser carregada de um cômodo a outro da casa. Quando ela ouviu falar do que ocorrera com Gerthrud, um lampejo de esperança iluminou-lhe os olhos. Pediu uma Bíblia e passou a estudá-la, tentando compreender as “novas idéias” defendidas pelos Belz. Finalmente se convenceu da verdade e a aceitou de todo o coração, decidida a se preparar para a segunda vinda de Cristo. Para sua grande surpresa, além da paz que passou a sentir, a doença desapareceu completamente. Ela se levantou da cama e reassumiu as atividades domésticas.
Quando Augusto chegou do trabalho na roça, esperando ter que preparar o jantar como sempre fazia, encontrou a mesa pronta e sua esposa andando alegre pela casa. Por um momento temeu que o longo tempo de prostração lhe houvesse afetado a mente, e perguntou o que tinha acontecido. Johanna contou tudo ao marido e disse que queria que ambos fossem fiéis a Deus, inclusive na observância dos dez mandamentos. Mais tarde Augusto aceitou a mensagem, tornando-se o primeiro ancião da igreja de Gaspar Alto e do Brasil.
Augusto e Johanna Olm
O pastor Frank H. Westphal conta que “foi dessa maneira que este grupo de crentes abraçou a verdade, sem ter visto um ministro adventista do sétimo dia, sendo guiados à luz pelo próprio Senhor”.[2]
Em 1924, a família Olm mudou-se para Taquara, RS. Augusto morreu de enfarto, em 15 de setembro de 1929, com 83 anos. Johanna faleceu sete anos depois, com 86 anos.
** A SEITA DE STANGNOWSKY
Houve outro guardador do sábado, chamado Augusto Anniess, também imigrante alemão, vindo para o Brasil com vinte anos, que já observava o sétimo dia (à sua maneira) antes mesmo de Guilherme haver tomado sua decisão. Anniess nasceu em 9 de dezembro de 1854, tendo sido batizado com 15 anos de idade na Igreja Batista. Dois anos depois, ainda na Europa, descobriu a verdade sobre o sábado e tornou-se adepto de uma seita liderada por Stangnowsky (natural da Prússia), também ex-batista. Embora tivesse tido contato com o pastor John Andrews, em 1875, o movimento de Stangnowsky pregava a volta de Cristo para o ano de 1896, ocasião em que, segundo eles, o Paraíso seria estabelecido no Pólo Norte.
Augusto Anniess fixou residência em Joinville, SC, e se uniu ao ramo dos seguidores de Stangnowsky, liderados por Kinder, que fora enviado como missionário para o Brasil, em 1878. Annies tornou-se, então, editor das publicações do movimento.
Em maio de 1895, o pastor Frank Westphal visitou Joinville e encontrou um grupo de mais de 70 membros do movimento de Stangnowsky (já falecido na época).[3] Sobre esse contato, o pastor Westphal relatou o seguinte: “Cerca da metade dos membros de sua igreja havia se recusado a seguir essas idéias estranhas, e imediatamente se uniu a nós ao ser-lhes apresentada a verdade. Os demais, entretanto, sob a liderança de um fervoroso cristão de nome Anis [Anniess], permaneceram fiéis aos ensinamentos de Stangnowsky, crendo que ele ressuscitará de maneira especial para cumprir suas promessas.”[4]
O pastor Westphal buscou abrir os olhos de Anniess, mantendo com ele, certa vez, o seguinte diálogo:
– Você espera estar no Pólo Norte em 1896?
– Sim – disse Anniess.
– Você me escreverá então uma carta antes do fim do ano de 1896? – tornou a perguntar o Pastor Westphal. Ao que Anniess respondeu:
– Sim.
– Obrigado – agradeceu Westphal. – Espero que sua carta tenha selo e carimbo do correio de Joinville e não do Pólo Norte.
De fato, antes do fim de 1896 o Pastor Westphal recebeu uma carta de Anniess, com selo de Joinville, contando que havia abraçado a fé adventista do sétimo dia, juntamente com os demais que haviam permanecido fiéis a Stangnowsky.
A respeito dos seguidores desse movimento europeu, Friedrich Stuhllman, escrevendo na Missionary Magazine, em julho de 1899, diz que muitos anos depois esses observadores do sábado foram alcançados pela mensagem adventista, da qual Kinder, embora de idade bastante avançada e com a vista muito fraca, tornou-se ardoroso adepto.
Augusto Anniess casou-se com Ida Panzer e teve sete filhos. Mudaram-se de Joinville para Curitiba, em 1906, onde Anniess assumiu a função de tesoureiro da recém-criada Associação Santa Catarina-Paraná.
Bodas de Ouro de Augusto e Ida Anniess
** ESPALHANDO AS BOAS-NOVAS
Guilherme Belz (o primeiro guardador do sábado no contexto das três mensagens angélicas) não demorou a espalhar as novas em sua região. Pouco tempo depois, já se reunia com dois amigos: Augusto Olm e Frederico Schirmer. Os três ficavam horas e horas, madrugada adentro, estudando a Bíblia à luz de lampiões. A cada sábado reuniam-se para estudar e orar, um na casa do outro.
Pouco depois, na Vila de Brusque, as famílias Look e Thrun também começaram a se reunir aos sábados para realizar seus cultos. Entretanto, a perseguição dos luteranos e de descrentes os forçaria a mudar-se para Gaspar Alto, em busca de paz. Em certa ocasião, enquanto realizavam o culto do pôr-do-sol, algumas pessoas começaram a jogar pedras e ovos podres na casa. Nas ruas, os adventistas eram vistos como “pessoas estranhas”, membros de uma “nova seita misteriosa”.
Um fato ocorrido com Reinhold Belz, filho mais velho de Guilherme Belz, ilustra o quão difícil era permanecer ao lado da verdade e da justiça. Numa manhã de domingo, 8 de maio de 1927, Reinhold se dirigia para a mata, com seus filhos Reinhold (de 22 anos) e Evaldo (de 13), a fim de cortar árvores para levar para a serraria de Fritz Peggau. Fritz era cunhado de Reinhold e alugava sua serraria por uma porcentagem das toras cortadas. As tábuas eram vendidas em Brusque, e esse negócio constituía um complemento às atividades da roça e da criação de gado.
Às 8 horas da manhã, Reinhold e Reinhold Filho conduziam o carro de boi, quando em certa curva da picada, no meio da mata, três jovens os abordaram. Evaldo, atrás do carro, só conseguiu ouvir as vozes exaltadas, mas não compreendeu o teor da conversa. De repente, ouviu um tiro e viu os três estranhos fugindo. Correu para o local do incidente e viu pai e irmão caídos numa vala. O pai estava morto.
Com a ajuda de Evaldo, Reinhold Filho saiu do buraco e ambos correram para casa, pedindo ajuda. O corpo de Reinhold ficou lá até a tarde, à espera do delegado.
Além de ancião, Reinhold era inspetor de quarteirão (função que, na época, equivalia à de sub-delegado). Como era cristão, responsável pela ordem local e parente de Fritz Peggau, Reinhold se viu na obrigação de advertir o cunhado de que vira as três filhas dele saindo às escondidas e em atitudes indecorosas com uns jovens recentemente chegados da Alemanhã. Fritz (que na época havia abandonado a fé adventista) castigou as filhas, e elas contaram tudo aos namorados. Estava aí o motivo para a eliminação do “incômodo delator”.
O filho mais velho de Reinhold, Edmond, de 31 anos, ficara revoltado e queria se vingar dos assassinos. Mas Reinhold Filho, que assistira ao assassinato do pai, disse: “Deus existe e Ele vai fazer justiça. Não precisamos fazê-la por nossas próprias mãos.” Ironicamente, pouco tempo depois, já libertos da prisão, os três assassinos acabaram morrendo (um deles picado por cobra).
Da esquerda para a direita: Emílio Doehnert, nascido em 1897, foi diretor da Casa Publicadora Brasileira entre os anos de 1938 e 1949, no período da 2ª Guerra Mundial. Evaldo Belz, nascido em 1914, foi chefe de produção da empresa adventista de alimentos naturais Superbom, onde começou a trabalhar em 1932, aposentando-se em 1974. Edegardo Max Wuttke, bisneto do pioneiro e pesquisador da origem do adventismo no Brasil. E Michelson Borges, autor deste livro. Foto tirada por ocasião das comemorações do Centenário da Casa Publicadora Brasileira, em 12 de março de 2000.
** OS PRIMEIROS COLPORTORES
É interessante notar como a mão de Deus conduzia os rumos da história brasileira, a fim de facilitar a pregação do evangelho. A invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, que pretendia dominar a Europa; a vinda da Família Real para o Brasil, escoltada por navios da Armada Britânica; a abertura dos portos brasileiros às nações amigas (particularmente aos navios comerciais ingleses); a permissão pela primeira vez dada na história do Brasil para o desembarque de ministros de outras confissões religiosas; a proclamação da Independência; o relacionamento familiar dos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II com as casas reais de outros países europeus de raízes germânicas; o início do fluxo imigratório trazendo, desses países, imigrantes luteranos e de outras denominações protestantes; e, finalmente, a crise generalizada que se abateu sobre a Europa, estimulando mais ainda a imigração em direção ao Brasil. Tudo isso colaborou, de uma forma ou de outra, para a chegada da mensagem adventista.
Em maio de 1893, por designação da Associação Geral, o colportor (vendedor de literatura religiosa)
Albert B. Stauffer chegou ao Brasil. Segundo E. H. Meyers,[5] Stauffer entrou pela região Sul do país, depois de ter trabalhado por dois anos no Uruguai e na Argentina, país onde foi iniciada a obra adventista na América do Sul.
Em 1885, depois de ler avidamente alguns exemplares da revista Les Signes des Temps (Sinais dos Tempos), Júlio Depertuis, que pertencia a uma colônia de batistas franco-suíços radicados em Santa Fé, Argentina, tornou-se o primeiro sul-americano a reconhecer o sábado como dia do Senhor.[6]
Posteriormente, Pedro Peverini, um senhor italiano que morava no norte da Argentina, em Las Garzas, leu em um jornal notícia sobre um batismo adventista, por imersão, realizado em Neuchatel, Suíça. A despeito de a matéria ridicularizar a cerimônia, o assunto despertou o interesse da família Peverine. Escreveram a uns parentes que residiam na Itália e pediram que estabelecessem contato com os adventistas da Suíça, a fim de que enviassem o periódico que publicavam em francês, conforme informava o jornal.
Os Peverini receberam a revista durante três anos, decidindo-se abraçar a verdade por volta do ano 1889. No ano de 1891, Elwin Winthrop Snyder e um grupo de colportores foram enviados para trabalhar na Argentina e, depois, no Uruguai e Brasil.[7] Junto com Snyder, vieram também Clair A. Nowlen e Albert B. Stauffer que, como já vimos, dois anos depois seria o primeiro colportor adventista a trabalhar no Brasil.
“O reavivamento religioso experimentado em países da Europa e América do Norte com a pregação adventista, no início do século 19, chegava também ao Brasil, embora com cerca de 50 anos de atraso. A Igreja Adventista do Sétimo Dia despontava assim como sucessora direta do movimento protestante, atingindo todos os continentes.”[8]
Elwin W. Snyder veio ao Brasil logo depois de Stauffer. No Rio de Janeiro, conheceu Albert Bachmeyer, jovem marinheiro alemão, que poucos meses antes havia aceitado a fé evangélica quando esteve em Liverpool. Os dois tornaram-se amigos e Bachmeyer acabou se convertendo à fé adventista. Snyder o treinou para a obra de colportagem e, mesmo ainda não batizado, o jovem alemão empenhou-se em sua nova missão. A seu respeito escreveu Guilherme Stein Jr.: “O irmão Bachmeyer era um colportor bem preparado. De agradável presença e um certo grau de cultura… Só podemos elogiá-lo pelo que diz respeito à sua conduta e tratamento.”[9]
Bachmeyer vendeu a literatura adventista em Indaiatuba, Rio Claro, Piracicaba e outras localidades. Assim, os primeiros interessados na mensagem adventista, em São Paulo, foram surgindo. Em Indaiatuba, a família de Guilherme Stein; em Rio Claro, Guilherme e Paulina Meyer, e o filho João Meyer; em Piracicaba, o professor Guilherme Stein Jr. e a esposa Maria Krähenbühl Stein. Stein Jr. era metodista e se converteu ao adventismo após a leitura de Der Grosse Kampf (O Grande Conflito), de Ellen G. White.
Mais ou menos por essa época, Albert B. Stauffer passou pelas colônias alemãs do Espírito santo. Anos antes, atraídos pela cultura cafeeira no Brasil, e pela propaganda promovida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Souza Coutinho, milhares de alemães da região da Pomerânia acabaram povoando as colônias de Santa Isabel e Santa Leopoldina.
Stauffer vendeu vários livros O Grande Conflito nas proximidades do Córrego de Santa Maria. “Como resultado da leitura deste livro, e de alguns outros, a colônia ficou em polvorosa. Houve discussão, brigas e perseguição. Alguns passaram a guardar o sábado, sendo por isso chamados de sabatistas amaldiçoados (verfluchte sabatisten).”[10]
Os adventistas que, em São Paulo e no Espírito Santo, observavam o sábado e criam na volta de Jesus estavam totalmente alheios à existência dos irmãos de Santa Catarina que havia alguns anos professavam a mesma fé.
Em agosto de 1894, chegou ao Brasil outro missionário adventista: Willian Henry Thurston. Thurston, acompanhado da esposa Florence, veio dos Estados Unidos com a missão de estabelecer um entreposto de livros denominacionais no Rio de Janeiro, para atender aos colportores no Brasil. Thurston trouxe duas grandes caixas de livros e revistas impressos em inglês, alemão e pouca coisa em espanhol. Na época, não havia nada publicado em português.[11]
Para chegar ao seu destino, muitos impressos eram despachados nos navios oceânicos, outros nos barcos fluviais a vapor (ou mesmo a remo), outros ainda em carros de boi, em lombo de burro e, às vezes, em algum trecho, nas costas do colportor.
** UMA BELA EXPERIÊNCIA
No livro Memórias de Tio Luiz, o autor Luiz Waldvogel conta um episódio das experiências pelas quais Thurston passou no Rio de Janeiro:
“Enquanto em Washington, visitei várias vezes a Review and Herald [editora adventista], procurando obter o máximo possível de exemplos e incentivos para o meu trabalho na Casa Publicadora, tanto mais quanto o ambiente era convidativo, os irmãos todos muito gentis e atenciosos. Com os diretores, redatores desenhistas, etc., colhi informações preciosas acerca do preparo de originais, redação, revisão… No gabinete do diretor artístico, foi-me apresentada uma de suas secretárias: Mrs. Thurston.
“– Mrs. Thurston? – indaguei. O nome me era conhecido. Ah, sim… prende-se a uma bela experiência de um dos pioneiros adventistas no Brasil. Perguntei:
“– A senhora tem qualquer parentesco com o irmão Thurston, que foi missionário no Brasil?
“– Perfeitamente. Sou nora de W. Thurston.
“E à minha mente vieram os contornos daquele incidente, que fala da solicitude do Senhor por sua Obra no Brasil. Voltando depois à biblioteca, recorri ao livro The Hand that Intervenes [A Mão que Intervém], do pastor W. A. Spicer. … Lá relemos a edificante narrativa:
“Muitos anos atrás, havendo desembarcado recentemente na cidade do Rio de Janeiro, o missionário W. Thurston se viu, com a família, sem dinheiro e sem pão. Por alguma falha, uma esperada remessa de dinheiro não lhe havia chegado. Era completamente estranho na grande cidade.
“Sendo convidado a dirigir a palavra aos marinheiros, num salão missionário do porto, desincumbiu-se da tarefa, falando do amor de Deus aos homens, e sem dar absolutamente a entender a sua necessidade de alimento. terminada a palestra, um cavalheiro veio a frente, e convidou o irmão Thurston para acompanhá-lo ao seu escritório. O próprio irmão Thurston referiu o caso numa conferência missionária:
“‘Segui-o ao seu gabinete, e ele disse:
“‘– Aqui está um pouco de dinheiro. Quero que o senhor o leve e o use até que eu lho peça – e entregou-me um saquitel de dinheiro, cerca de quatrocentos cruzeiros.
“‘– Bem – respondi – eu não lhe pedi dinheiro…
“‘– Eu sei – replicou ele – mas esse dinheiro me está sobrando aqui, e todos os dias tenho de guardá-lo. Quero que o senhor o leve e o use; talvez esteja precisando.
“‘Então eu lhe expliquei como de fato estávamos sem recursos, e nada tínhamos que comer, e era isso mesmo que necessitávamos. Tivemos uma conversa muito agradável, e minha esposa e eu fomos para casa e rendemos graças ao Senhor.
“‘De tempos a tempos, quando me encontrava com aquele senhor na rua, ele me entregava importâncias que iam de duzentos a mil cruzeiros, dizendo: ‘Tome isto: está-me sobrando. Não preciso disso. Leve-o e use; talvez precise. Fique com isso até que eu lhe peça.’
“‘A importância total atingiu de seis a sete mil cruzeiros; e quando devolvi o dinheiro ao homem, ele disse:
“‘– Eu nunca em minha vida fizera tal coisa de entregar dinheiro a alguém sem lhe exigir nenhum documento; mas eu sei o que foi que se deu: Deus me mandou que lhe desse esse dinheiro, porque o senhor tinha necessidade dele.’”[12]
** OS PRIMEIROS BATISMOS
Pastor Frank Westphal (sentado) e família
O mesmo navio – Magdalena – que trouxe o casal Thurston ao Brasil levou o pastor Frank Henry Westphal para a Argentina. Eram poucos os primeiros representantes da Igreja Adventista no continente sul-americano. No final de 1894, num território de 15.500.000 quilômetros quadrados, somente dez homens se dedicavam à proclamação da fé adventista, oralmente ou por escrito. Um deles era o pastor Westphal, outro era o diretor de colportagem, e os outros eram colportores, incluindo Stauffer e Bachmeyer. Mas, em apenas cinco anos, os dez já eram duzentos![13]
Neste mesmo ano – 1894 – Albert Bachmeyer chegou ao Estado de Santa Catarina. Grande foi sua alegria quando, ao oferecer livros a uma família em Brusque, descobriu que havia adventistas ali. Imediatamente, transmitiu a boa notícia a Thurston que, por sua vez, escreveu informando o pastor Westphal, na Argentina.
Westphal foi o primeiro ministro adventista enviado para servir na América do Sul. Ordenado ao ministério em 1883, em Michigan, dedicou-se à missão urbana de Milwaukee e lecionou História no Departamento Alemão do Union College. Em 1894 foi chamado para servir no continente sul-americano.
O pastor F. H. Westphal veio para a América do Sul juntamente com Willian Henry Thurston, que era irmão da esposa do pastor. Thurston, como já vimos, ficou no Rio de Janeiro e Westphal seguiu para a Argentina.
Em fevereiro de 1895, o pastor Westphal desembarcou no Rio de Janeiro, onde o esperavam o casal Thurston e o colportor A. B. Stauffer. Sobre esta experiência Westphal escreveu: “Quando a Associação Geral me enviou para o grande continente meridional, eu fui nomeado superintendente da Missão Costa Leste da América do Sul, que incluía Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. Assim, eu me senti na obrigação de fazer uma visita ao Brasil logo que possível. Após ter passado aproximadamente seis meses na Argentina e no Uruguai, zarpei para o Brasil em fevereiro de 1895. Quando nosso barco chegou, ficamos de quarentena [procedimento comum na época] numa linda ilha [Ilha das Flores] perto do Rio de janeiro, onde permanecemos muitos dias.”[14]
Acompanhado por Stauffer, o pastor Westphal seguiu primeiro para o interior de São Paulo, para batizar os primeiros conversos naquele Estado. “A terra era muito traiçoeira” – conta Westphal – “e encontramos muitos desmoronamentos em nosso caminho, alguns dos quais até mesmo soterraram o trilho do trem. Tivemos que viajar a pé 60 quilômetros no abrasador e sufocante calor de um verão tropical, mas arranjamos um trem carregador de cascalho para o restante da viagem. Fomos a Piracicaba para realizar nosso primeiro batismo no Brasil, pois morava nessa cidade um crente que já obedecia à verdade havia algum tempo, tendo até mesmo traduzido o livro Caminho a Cristo para o português.”[15]
O crente a quem o pastor Westphal faz referência é o professor Guilherme Stein Jr., justamente o primeiro adventista brasileiro a ser batizado, numa manhã de abril de 1895. Seu batismo foi realizado no rio Piracicaba, que na língua indígena significa colheita de peixes. “Interessante o simbolismo, porque este primeiro batismo seria apenas o primeiro passo para uma grande colheita de almas.”[16]
“Guilherme Stein Jr. nasceu em Campinas, em 13 de novembro de 1871, e estudou nessa cidade, num colégio alemão luterano. Em 1893, transferiu-se para Piracicaba, indo residir na casa dos pais de Maria Krähenbühl, com quem se casou posteriormente. Os Krähenbühl eram metodistas. Guilherme Stein começou a freqüentar a Igreja Metodista e converteu-se. Tornou-se ardoroso estudante da Bíblia. Levantava-se todos os dias às cinco horas da manhã, para ler e estudar a Palavra de Deus antes de ir para o trabalho…
“Maria Krähembühl contou a Guilherme Stein que sua avó possuía um livro que lhe fora vendido por dois homens que não tomavam café (Albert Staufer e Albert Bachmeyer). O livro era Der Grosse Kampf (O Grande Conflito). Foi grande o entusiasmo e intereresse de Guilherme Stein ao ler esse livro. Desejou mais literatura e ao encontrar no próprio livro o número de uma caixa postal no Rio de Janeiro, entrou em contato com Willian Henry Thurston, que lhe remeteu mais literatura e ao mesmo tempo escreveu ao seu cunhado Frank Henry Westphal, na Argentina, para que viesse conhecer o progresso missionário adventista no Brasil através da colportagem.”[17]
Guilherme Stein Jr.: primeiro converso batizado no Brasil
Stein Jr. desempenhou papel importante na obra adventista do Brasil como colportor, evangelista, professor, administrador, redator e editor. Sobre seu batismo, diz o pastor Westphal: “Escolhemos para o batismo um lugar em que uma pequena ponta de terra se projetava em direção às águas. Temendo que pudesse atolar-me naquele local, pedi que o irmão Stauffer me segurasse pelo paletó com uma das mãos, e com a outra se agarrasse a um galho de árvore, permitindo assim que eu ajudasse também o candidato. Desta forma entramos na água e foi realizado o batismo.”[18]
Local do primeiro batismo adventista no Brasil
O segundo batismo ocorreu logo em seguida, em Rio Claro, com dois conversos: Guilherme e Paulina Meyer. Logo depois, mais seis pessoas foram batizadas em Indaiatuba: Guilherme Stein (pai), sua esposa e mais quatro filhos. A etapa seguinte era Santa Catarina.
Antes de chegar a Brusque, no dia 30 de maio de 1895, o pastor Westphal pregou a mensagem nas cidades de Joinville, Blumenau e outras da região. Deixou mais de 30 observadores do sábado em Joinville (dentre eles os ex-seguidores de Stangnowsky), preparando-se para um batismo futuro.
Já em Brusque, Westphal diz ter encontrado os primeiros grupos de conversos aos adventismo, no Brasil. “O primeiro grupo a ser visitado vivia numa pequena comunidade um pouco distante de Brusque”, lembra Westphal. “Um jovem montado numa mula foi o meu guia. Iniciamos a viagem à uma hora da manhã, viajando por montanhas altas e, quando o dia amanheceu, estávamos bem acima das nuvens, que pareciam belos lagos. Após viajarmos diversas milhas, alcançamos o lar do irmão Guilherme Belz, que alguns anos antes havia aceitado a mensagem.”[19]
Enquanto visitava a Vila de Brusque e suas imediações em busca dos crentes dispersos, o pastor Westphal teve que enfrentar a forte oposição e intransigência dos religiosos da época – tanto luteranos como católicos – que se consideravam donos da verdade. Algumas vezes esteve a ponto de perder a vida, mas prosseguiu em sua missão.
Emocionados, os novos conversos ouviram pela primeira vez a pregação de um ministro adventista. Em 8 de junho de 1895, foi realizado o primeiro batismo de oito pessoas no rio Itajaí-Mirim, uns cinco ou seis quilômetros acima da Vila de Brusque. Foram registradas as seguintes pessoas: o casal Ludwig e Henriette Look, Carlos Look Filho e Ida Look, o casal Karl e Hulda Thrun e os filhos Hermann, Gustav e Isidor Thrun.
Três dias depois, o pastor Westphal realizou o segundo batismo em Braunschweig (Gaspar Alto). Naquele dia, mais 14 pessoas foram batizadas: o casal Guilherme e Johanna Belz, Francisco e Gerthrud Belz e Anna Wagner; o casal Augusto e Johanna Olm, Margarete Olm, Ricardo Olm e suas irmãs Martha e Clara Olm; Hermann e Emill Olm o colportor Albert Bachmeyer que, embora convertido, ainda não havia sido batizado.[20] (Em 14 de dezembro desse mesmo ano, foi realizado o primeiro batismo adventista no Estado do Espírito Santo. O Pastor Huldreich Graf batizou na ocasião 23 pessoas, dentre as quais os pais do Pastor Gustavo Storch.[21])
Certo dia, o pastor Westphal estava fazendo os preparativos para uma reunião de sexta-feira à noite e sábado, no final da qual haveria uma Santa Ceia, em Brusque. Entretanto, o dono da casa onde os adventistas iriam se reunir não quis mais cedê-la; devolveu o dinheiro do aluguel e pediu o recibo de volta. O pastor Westphal perguntou o porquê daquilo e o proprietário explicou que o padre o havia visitado, ameaçando denunciá-lo no sermão de domingo, caso ele permitisse que os adventistas usassem a casa. Como aquele senhor era comerciante, temeu que aquilo trouxesse vexame sobre ele, atrapalhando seu negócio. Percebendo que o homem estava realmente preocupado, o pastor Westphal devolveu-lhe o recibo pegando o dinheiro de volta.
O gerente de uma fábrica de roupas, sabendo do problema, cedeu uma grande sala para realizarem o culto de sexta-feira à noite. Mas, na manhã seguinte, o proprietário da fábrica, também por imposição do pároco, mandou suspender a cessão do local. Depois de procurarem sem sucesso outro lugar, os adventistas reuniram-se à margem do rio Itajaí-Mirim, onde havia toras de madeira que serviram de assento, e uma tora maior, com superfície plana, que serviu de mesa para a Santa Ceia.
Sobre essa reunião, ocorrida em junho de 1895, disse o Pastor Westphal: “Naqueles bancos de madeira junto ao rio formamos o primeiro grupo organizado de adventistas do sétimo dia do Brasil[22] e celebramos a Ceia do Senhor.”[23] Augusto Olm foi escolhido para a função de primeiro-ancião e Guilherme Belz, para a de diácono. Os cultos eram realizados alternadamente na casa dessas duas famílias, até que, no dia 23 de março de 1898, foi inaugurado o singelo templo de Gaspar Alto.
Além dos membros batizados, vários interessados na mensagem participaram daquela Santa Ceia às margem do Itajaí-Mirim. Um deles era uma mulher proprietária de uma destilaria. Durante o culto ela nada dizia, mas lágrimas lhe rolavam dos olhos, porque um de seus filhos havia falecido justamente em decorrência do alcoolismo e um outro estava indo pelo mesmo caminho. No final da cerimônia, ela retornou decidida para casa. Fechou a destilaria e transformou o salão de bailes numa casa de culto.
Depois de passar cinco meses longe da Argentina, o pastor Westphal ansiava por rever a família. Planejava viajar no dia seguinte à cerimônia às margens do Itajaí-Mirim, quando recebeu mensagem de um comerciante, pedindo-lhe para visitá-lo à noite, antes de viajar. O homem havia convidado várias pessoas para ouvir o pastor falar sobre a Palavra de Deus, e Westphal aceitou o convite, pregando um sermão sobre “a obra do selamento”. O próprio pastor Westphal conta o que ocorreu então: “Eu estava finalizando meus comentários com um apelo fervoroso para que meus ouvintes se preparassem para a vinda do Senhor. Houve um súbito barulho, como o tiro de um canhão. Inconsciente do que havia ocorrido, mas vendo meus amigos pegando pedras no chão, eu olhei para a janela atrás de mim. Lá, suspensa pela frágil cortina, havia uma pedra grande, de aproximadamente duas vezes o tamanho do punho de um homem. Então meus amigos me disseram que oito homens tinham se reunido perto da janela com uma pedra cada um. E quando um deles contou até três, todos juntos atiraram as pedras ao mesmo tempo, tendo como alvo minha cabeça. Mas nenhuma pedra sequer tocou em mim. O comerciante, profundamente emocionado por toda esta maravilhosa manifestação do cuidado protetor de Deus, ajoelhou-se e orou.”[24]
Logo após a reunião, Westphal planejava voltar ao hotel a fim de prosseguir viagem durante à noite, mas seus ouvintes insistiram para que não fizesse isso, pois os agressores poderiam estar à beira da estrada aguardando para um novo ataque. Westphal disse que não poderia se arriscar a perder o navio para Buenos Aires. Ele estava preocupado com a esposa, que não sabia falar espanhol, e com os filhos pequenos.
Mais tarde Westphal soube que, de fato, aqueles oito homens haviam se escondido atrás de alguns arbustos no caminho por onde ele voltou para o hotel. Mas “o poder protetor de Deus lhes impediu de me atacarem”, escreveu o pastor. “À uma hora da manhã eu iniciei minha jornada a cavalo, regozijando-me por ter escapado sem nenhum arranhão.”
Depois de uma longa cavalgada, cansado e exausto, Westphal alcançou o navio que rumava para a Argentina. Como seu dinheiro estava no fim, ele comprou uma passagem de terceira classe, dormindo num banco sem colchão. Numa parada no Rio Grande do Sul, Westphal comprou um cobertor a fim de melhor enfrentar o clima frio do sul.
Dias depois, quando finalmente chegou em casa, a esposa e o filho de quatro anos foram recebê-lo à porta, mas a filhinha Helen não apareceu. A Sra. Westphal, com o olhar triste, contou então ao esposo que sua filha havia falecido havia duas semanas, sendo sepultada no cemitério de Chacarita, num lugar próprio para estrangeiros. Muitas cartas foram enviadas ao Brasil, relatando a situação de Helen, mas nenhuma delas chegou às mãos do pastor.
“À medida em que ela me contou os detalhes acerca da batalha perdida para a morte”, relata Westphal, “nossos corações sofreram, mesmo que não desejássemos reclamar. Além do mais, essa triste experiência abriu mais ainda nossa compreensão do maravilhoso amor de Deus. Percebemos mais profundamente quão grande foi o amor do Pai Celeste em ter dado Seu único Filho para morrer uma morte cruel, numa terra estranha, distante de Seu lar celestial e de todos aqueles de quem recebia amor e simpatia. Isto nos levou a consagrar nossas vidas uma vez mais a Deus e à Sua obra, e trabalhar fielmente, para que venha logo o dia em que o Senhor aparecerá e devolverá nossa pequena filhas aos braços de sua mãe.”
Sobre aqueles dias difíceis, a esposa de Westphal escreveu: “Longas viagens foram feitas em assentos de madeira. Dormíamos em camas duras, pois naqueles dias poucas pessoas possuíam colchões de mola. Em alguns lugares havia muitos mosquitos e pulgas. … Aqueles foram dias de bênçãos espirituais, e não existe arrependimento pelo sacrifício que fizemos. Se pudesse, viveria aqueles dias novamente e faria um trabalho melhor pelo meu Mestre. Porém, ‘passamos por este caminho apenas uma única vez’, portanto, vamos ser fiéis enquanto os dias ainda estão se esvaindo.”[25]
“Nunca mais tive o privilégio de rever a cidade de Brusque”, escreveu Westphal, “mas estou sabendo que novos membros foram acrescentados ao grupo de lá, e já aumentou para uma igreja de duzentos membros.”[26]
Poucos anos depois, grupos de conversos adventistas já realizavam a Escola Sabatina em Campos dos Quevedos e Taquari (RS), Joinville (SC), Curitiba (PR), Rio Claro e Indaiatuba (SP) e Santa Maria (ES). O árduo trabalho dos missionários pioneiros prosperava, e mais e mais pessoas eram salvas para o Reino de Deus.
Primeira conferência pública em Gaspar Alto. Atrás, o primeiro templo, de madeira
Primeiro templo de Gaspar Alto, inaugurado em 23 de março de 1898
Segundo templo de Gaspar Alto, construído após a II Guerra Mundial
O DIA DO SENHOR
“Vocês são a luz do mundo todo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma lamparina para pôr debaixo de um cesto. Ao contrário, ela é colocada no lugar próprio para que ilumine todos os que estão na casa.” Mateus 5:14 e 15 BLH
A mensagem adventista, embora tenha se estabelecido primeiramente em Gaspar Alto, não conseguiu ficar escondida naquele pequeno vale em meio às montanhas. Os raios de luz do evangelho foram pouco a pouco se espalhando. As pessoas comentavam; os folhetos e livros continuavam a fazer sua parte.
Em Lageado Baixo, a menos de 20 quilômetros de Gaspar Alto, Roberto Fuckner, nascido em Holstein, na Alemanha, ouviu falar que seu amigo Guilherme Belz e outras famílias estavam guardando o sábado.
– Sabe o quê, Maria? Eu tenho que ir a Gaspar Alto. Ouvi falar que o Guilherme e outros estão guardando o sábado. Eles estão com a cabeça virada e preciso ir lá endireitar a cabeça deles.
Na sexta-feira seguinte, à tarde, Roberto pegou o chapéu e a bengala, despediu-se da esposa Maria, e partiu a pé para Gaspar Alto. Ambos eram piedosos luteranos e não podiam permitir que o amigo Guilherme se deixasse levar por “essas novas idéias estranhas”.
Depois de uma caminhada de cerca de três horas por um estreito atalho, Roberto chegou até a casa do amigo. Guilherme o recebeu sorridente, vestindo um bonito terno escuro.
– Boa tarde, amigo Roberto! O que o traz até minha casa?
– Boa tarde, Guilherme. Por acaso você vai a algum casamento, vestido assim de terno e gravata? – pergunta Roberto, sem esconder a estranheza.
– Não, amigo – diz Belz calmamente. – As pessoas costumam se vestir bem, quando vão receber um prefeito ou governador. Eu me arrumei assim pois vou receber Jesus. Hoje é sábado, o dia do Senhor.
Franzindo o cenho, Roberto responde:
– É justamente por isso que eu vim.
Os amigos entraram e conversaram quase a noite toda. Passaram-se o sábado e a manhã de domingo. À tarde, Roberto se despediu de Guilherme e empreendeu a caminhada de volta a Lageado Baixo.
Quando já estava próximo de casa, seus amigos, num bar, o convidaram para jogar baralho e beber cachaça. “Não tenho tempo agora”, foi a resposta do alemão apressado. Chegando em casa, tirou o chapéu, guardou a bengala e sentou-se à mesa. Sua esposa aguardava curiosa uma palavra do marido. Roberto, sério, começou a comer em silêncio. Maria não se conteve:
– Como é, Roberto? Nem me conta nada! Endireitaste a cabeça do Guilherme?
Roberto levanta o rosto, encara a esposa e responde com convicção:
– Não, Maria. O que eu descobri é que, se nós queremos praticar a verdade, temos que guardar o sábado também!
– O quê!? – Maria arregala os olhos. – Em vez de tu endireitares a cabeça deles, eles viraram a tua?
– Não, Maria. Vai buscar a tua Bíblia – Roberto tira do bolso da camisa um papel rabiscado. – Eu tenho marcadas aqui as passagens.
Maria vai até o quarto e traz a velha Bíblia que já havia sido de sua mãe, na Alemanha.
– Agora encontre o texto de Eclesiastes 12, versículo 13.
– Aqui está – diz Maria, segundos depois.
– Então leia.
“– De tudo o que se tem ouvido, o fim é: teme a Deus e guarda os Seus mandamentos, porque este é o dever de todo homem.”
– Veja, Maria, aí diz “todo homem”. Portanto, os mandamentos não são só para o povo judeu, como nos haviam ensinado. Além do mais, de acordo com o livro de Gênesis, o sábado foi dado a Adão e Eva na criação do mundo, quando não havia sequer um judeu ou outro povo qualquer sobre a Terra. Agora leia Êxodo, capítulo 31, verso 18.
“– E deu a Moisés (quando acabou de falar com ele no monte Sinai) as duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus.”
– Veja só a importância da lei! O próprio Deus a escreveu com Seu dedo em tábuas de pedra…
– Mas o que isso tem a ver com o sábado, Roberto? – interrompe Maria, já quase impaciente.
– Leia o quarto mandamento em Êxodo 20:8 a 11 – diz Roberto, apontando a mão para a Bíblia aberta diante de Maria.
– Está bem. Aqui está: “Lembra-te do dia de sábado para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus…” – Maria levanta os olhos sem terminar de ler o texto e exclama:
– Roberto, como pode?! Toda a vida nós lemos a Bíblia e nunca notamos isto!
– Não estás vendo, agora? Não achas também que, se queremos praticar o que está na Palavra de Deus, temos que guardar o sábado?
Roberto toma a Bíblia das mãos de Maria e lê outras passagens: “…Até que o céu e a terra passem, nem um jota ou til se omitirá da lei…” (Mateus 5:18); “Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos” (Mateus 19:17); “E, chegando a Nazaré, onde fora criado, [Jesus] entrou num dia de sábado, segundo o Seu costume, na sinagoga…” (Lucas 4:16); “E as mulheres que tinham vindo com Ele da Galiléia… no sábado repousaram conforme o mandamento” (Lucas 23:55-56); “E santificai os Meus sábados e servirão de sinal entre Mim e vós” (Ezequiel 20:20); “Qualquer que guardar toda a lei e tropeçar em um só ponto torna-se culpado de todos” (Tiago 2:10); “Se Me amardes, guardareis os Meus mandamentos” (João 14:15).
O casal continuou estudando a Bíblia. Roberto visitou Guilherme mais umas duas ou três vezes, quando finalmente decidiu-se guardar o sábado e a ser um novo proclamador dessa mensagem. Em pouco tempo, as famílias Pollhein e Zabel já estavam unidas aos Fuckner, professando a mesma fé.
No ano de 1898, o grupo de adventistas se reunia na sala da casa dos Fuckner, e as músicas que cantavam aos sábados eram ouvidas por alguns vizinhos. Um deles era Carlos Zabel, com quem Roberto havia estudado a Bíblia em algumas ocasiões. “Que mal há em eu trabalhar no dia de sábado?” – justificava-se ele. “Lembre-se, Carlos” – dizia Roberto, – “Eva também pensou em que mal havia comer um simples fruto. O mal não está no ato em si, mas na desobediência à vontade de Deus. É nas pequenas coisas que o Senhor testa Seus filhos.” Mas Zabel não se rendia aos argumentos do amigo.
Numa manhã de sábado, Carlos estava trabalhando na roça de aipim, num terreno elevado, quando ouviu o grupo adventista entoando hinos do hinário luterano (único à disposição na época) Singet Dem Herrn (“Cantai ao Senhor”). Aquilo o comoveu. Carlos colocou a enxada sobre o ombro, desceu o morro e entrou em casa apressado. Sua esposa Alvina ficou surpresa.
– Já vieste da roça?! O que foi que aconteceu?
– Vai mudar de roupa, Mulher. Nós vamos lá na Escola Sabatina.
Os dois colocaram suas melhores roupas, foram até a casa dos Fuckner e dali para frente passaram a pertencer à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que cada vez mais se desenvolvia em Lageado Baixo. Roberto Fuckner desempenhou a função de primeiro ancião do grupo, cargo que passou, posteriormente, a seu filho Oswaldo.
Roberto Fuckner foi um dos pioneiros em Lageado Baixo
Oswaldo e Christina Fuckner tiveram 12 filhos, um dos quais (Luiz Lindolfo), iria tornar-se pastor. Christina dava aulas de alfabetização para as crianças da localidade e gostava de escrever poemas. Um deles, transcrito abaixo, fala do surgimento da Igreja Adventista no Brasil:
Ó, Itajaí, porto glorioso!
Tão belo e maravilhoso,
Pois de todo o Brasil
És o porto mais gentil.
És o porto mais amado,
Mais bendito e sagrado.
De ti nos veio a salvação.
Louvamos-te de coração.
Por ti o Deus dos altos Céus
Mandou-nos mensagens Suas.
Um missionário ali passou
E revistas ali deixou.
Um senhor, um professor
Foi quem as revistas ali achou
Para Brusque as levou
E mais revistas encomendou.
Para uma venda as levou
E por bebidas as trocou
E com as compras embrulhadas,
A Gaspar Alto foram levadas.
Guilherme Belz foi o senhor
Que a revista ali levou
A seus vizinhos convidou
E a Escritura examinou.
E mais revistas encomendaram;
Sempre mais as estudaram.
E para o batismo preparado,
Um pastor foi convidado.
Ó, Brusque, tens um grande preço,
Pois do batismo és o berço.
Em ti foram batizados
Os primeiros candidatos.
A mensagem subiu a Lageado
Ali também foi aceita.
Mais tarde um grupo preparado
Foi em igreja organizado.
Em Gaspar Alto trabalharam;
Até um ginásio edificaram.
E jovens foram educados
Como missionários preparados.
Pastor John Lipke, o professor,
Foi quem aos jovens ensinou.
Estando bem preparados,
À Obra foram enviados.
A todos os Estados foi levado
O Evangelho aqui iniciado.
A verdade assim foi ensinada
E a lei de Deus observada.
Agora muitos crentes
De toda raça e toda a gente,
Clamam: “Jesus Cristo, vem
Nos levar à Jerusalém!”
Lá, naquela Cidade linda,
Tão querida e tão infinda,
Veremos o Senhor Jesus
Que por nós morreu na cruz.
Logo a Terra renovada
Sim, será nossa morada.
E todos os sábados nos reuniremos,
Nosso Redentor louvaremos.
Vinde, jovens companheiros,
Ao encontro de Jesus.
Logo sempre viveremos
Com Jesus, na Sua luz.*
(*) Original em alemão: Christina Fuckner (1894–1976), batizada em 1910. Tradução: Helga Nogueira.
UM EXEMPLO DE FÉ
Mãos firmes nas rédeas. Os chicotes golpeiam os cavalos já ofegantes com a subida do morro que leva a Gaspar Alto. É noite e os dois cavaleiros mal conseguem ver o estreito caminho. Mesmo assim, avançam determinados.
Georg Friedrich Adolfo Hort sempre teve fama de valentão. Desde que ouvira falar que um grupo de famílias havia formado uma nova “seita” em Braunchweig (Gaspar Alto), tomara a decisão de acabar com aquilo. Afinal, “religião de alemão é só a Luterana” – dizia.
Convidou um amigo e cavalgaram até o local onde ficava a pequena igreja. Apearam dos cavalos e, de chicote em punho, estavam dispostos a invadir o templo e causar a maior confusão. De repente, Adolfo se detém.
– Espere um pouco… Ouça o que o pregador está dizendo!
No momento em que os dois espiam pela janela, alguém lê as palavras do livro de 1 João, capítulo um, verso sete: “Mas se andarmos na luz como Ele na luz está, temos comunhão uns com os outros e o sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo pecado.”
Adolfo olha para o colega e diz:
– Isso me impressionou. Vamos embora.
Adolfo Hort era apenas um garotinho quando o pacote de revistas adventistas procedente dos Estados Unidos foi aberto diante de seus olhos curiosos. Seu pai, Davi Hort, não se interessou pelo conteúdo da revista que ganhara de Carlos Dreefke e deu-a à esposa Anna Dorothéa. Aparentemente, a Mensagem Adventista não havia chamado a atenção da família Hort. Dorothéa ficara impressionada com a grande enchente do início da década de 1880, interpretando-a como um dos sinais do fim do mundo. Mas isso fora tudo.
Adolfo agora tinha 27 anos e estava casado com Emma Kräft Hort. Ema era filha de August e Caroline Wiedenhöft Kräft, imigrantes alemães muito pobres. Para sobreviver, trabalhou como doméstica para os Hort. Ali conheceu Adolfo. Apaixonaram-se e casaram em 25 de junho de 1891.
Depois do incidente em Gaspar Alto, Adolfo começou a pensar mais seriamente nas coisas que ouvira falar sobre os adventistas. Dirigiu-se até o pastor luterano de Brusque e pediu explicações, recebendo a promessa de que no domingo, durante o culto, seria explicada a questão do sábado.
Adolfo e Emma sentaram-se na primeira fileira de bancos da igreja luterana, especialmente atentos naquela manhã de domingo. Após alguns cânticos, o pastor dirigiu-se ao púlpito e começou a falar:
– Prezados irmãos, têm surgido em nosso meio algumas dúvidas doutrinárias, devido a existência dos tais adventistas do sétimo dia em nossa região. Primeiramente, é preciso deixar claro que a Bíblia realmente apresenta o sábado como dia santificado por Deus. Só que nós já estamos tão acostumados com o domingo, que continuaremos a observá-lo.
Adolfo inquietou-se. Mal conseguiu prestar atenção ao resto do sermão. Ao voltarem para casa, comentou com a esposa:
– Emma, você escutou bem o que o pastor disse?
– Sim, escutei.
– Pois então. Se o domingo é apenas uma tradição, creio que devemos guardar o sábado como os adventistas.
Adolfo e Emma, dali em diante, tornaram-se observadores do sábado, embora ainda não se reunissem com os adventistas. Estudavam a Bíblia até altas horas da noite, à luz de lampiões de querosene. Foi então que começaram as perseguições por parte da família.
Os irmãos de Adolfo atiravam pedras nas vidraças da casa enquanto ele estudava a Bíblia. Uma cunhada chegou a dizer que preferia criar criminosos a viver com adventistas. Anos mais tarde, ironicamente, os filhos dessa mesma cunhada assassinaram uma pessoa.
Como nessa época Davi Hort já havia falecido, Anna Dorothea foi morar com o filho Adolfo. Não suportando mais a pressão dos familiares, Adolfo, esposa e mãe mudaram-se para Blumenau. Naquela cidade, Anna se converteu e os três foram batizados.
Adolfo Hort tinha 11 anos quando presenciou a abertura do pacote contendo dez revistas Arauto da Verdade
Viveram cerca de 20 anos em Blumenau. Por volta de 1915, mudaram-se para Jaraguá do Sul. Com os filhos Carlos, Germano, Bertoldo, Elizabeth, Leonida, Arthur, Carolina, Erica e Augusta, mais algumas outras pessoas, o casal Hort fundou a primeira igreja adventista em Jaraguá do Sul, fechada alguns anos depois devido à mudança da família para Corupá. No dia 28 de novembro de 1918, Anna Dorothea morreu.
Em Corupá (distante uns 35 quilômetros de Jaraguá), Adolfo trabalhava como carpinteiro e ajudou a construir, na década de 1930, a primeira igreja adventista da cidade. Sobre essa época, sua neta Marta N. Hort Rocha, filha de Arthur Hort, conta muitas histórias.
Certa ocasião, Adolfo estava trabalhando sobre o telhado de um paiol. Pediu água à sua neta Marta que, instantes depois, já estava com uma caneca cheia nas mãos. Adolfo pediu que a menina lhe alcançasse a caneca. Vendo o esforço da filha, erguendo os bracinhos para cima com a água, Arthur diz:
– Ah, mas assim, nem que nós te ergamos, tu não consegues alcançar!
– Então me ajuda, papai.
– Não, netinha. Quero que tu tragas a água para mim. Sobe nessa escada – diz Adolfo, apontando para uma escada de madeira que, do ponto de vista da pequena Marta, era enorme.
Como sempre teve medo de altura, Marta sobe a escada com todo cuidado, sob o olhar do pai Arthur.
– Estás com medo, netinha? – pergunta Adolfo sorrindo. – A menina diz que sim, balançando a cabeça, sem olhar para baixo.
– É, mas é bom tu aprenderes a não ter medo de almejar as alturas, pois para irmos para o Céu, temos que subir de degrau em degrau na escada da santificação.
Tirar lições espirituais de coisas do cotidiano era prática comum para Adolfo. Em outras ocasiões, escondia uma das bonecas de sua neta Marta, ajudando-a, depois, a procurá-la. Minutos depois, graças às pequenas pistas do avô, os dois encontravam o brinquedo e Adolfo fazia uma “festa”. Em seguida, colocando a criança no colo, dizia:
– Assim é com a Palavra de Deus. Temos que procurar, procurar e procurar sempre mais. E sempre encontraremos coisas novas para nos ajudar no preparo para a volta de Jesus.
A fé de Adolfo era surpreendente. Certa vez, enquanto visitava os parentes em Brusque, conversou com uma de suas sobrinhas que estava grávida. Ema era filha de Carlos Hort e disse a Adolfo que uma benzedeira “profetizara” que ela não sobreviveria ao parto. Adolfo convidou-a a fazer uma oração e disse que “em nome de Jesus, Ema não morreria”. Ema passou bem e nasceram-lhe duas gêmeas perfeitamente saudáveis: Elvira e Milita. Posteriormente, as duas tornaram-se adventistas. Elvira casou-se com Arthur Sartotti e tiveram um filho, o pastor Orlando Sartotti.
Sentindo o peso da idade e tendo todos os filhos já casados, Adolfo voltou com a esposa para Jaraguá do Sul. Ali morou com o filho Bertoldo até falecer no dia 9 de fevereiro de 1944. Sua esposa Emma faleceu dois anos e meio depois.
Enquanto morou em Jaraguá, Adolfo Hort ajudou a cuidar da marcenaria de seu filho. Nas horas vagas, tratava das doenças de alguns vizinhos, pois adquirira um bom conhecimento de tratamentos naturais por meio de livros em alemão. Chegou até a realizar uma cirurgia de raspagem de osso infeccionado no pé de sua nora. Ela ficou, depois disso, completamente curada.
Nos últimos momentos, antes de falecer, Adolfo pediu que chamassem seus filhos Bertoldo e Carlos para que tocassem um hino ao violino. Os dois e alguns outros parentes circundaram a cama do velho pai. Adolfo sabia que estava morrendo. Deu a mão para cada filho e se despediu deles. Ao chegar a vez de Emma, disse ternamente:
– Não chores, querida. Eu vou dormir* só um pouquinho, porque logo Jesus vai voltar e estaremos juntos novamente.
Dizendo isso, Adolfo ergueu uma das mãos e pediu que sua esposa juntasse a mão esquerda, paralisada, à direita, para que ele pudesse orar. Terminada a oração, Adolfo fechou os olhos. E morreu serenamente.
“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. … Dar-lhe-ei abundância de dias, e lhe mostrarei a Minha salvação.” (Versos do Salmo 91, o preferido de Adolfo Hort.)
Adolfo Hort ajudou a construir o templo adventista de Corupá, SC
(*) Baseados em textos como João 11:11-14, 43, 44; Marcos 5:39; Eclesiastes 9:5-6; Salmo 146:4; Jó 14:1, 2, 7, 10-12; João 6:40; 1 Coríntios 15:20-23; 1 Tessalonicenses 4:12-17 e outros, os adventistas crêem que os “mortos em Cristo” aguardam como que dormindo, inconscientes, a segunda vinda de Jesus à Terra, quando serão, então, ressuscitados para a vida eterna.
DAS COLÔNIAS ALEMÃS PARA O BRASIL
São Leopoldo, no Vale dos Sinos gaúcho, foi o ponto de partida de uma saga iniciada em 1824 com a fundação da primeira colônia de imigrantes alemães no país, então recém-emancipado de Portugal. Por influência de José Bonifácio, dom Pedro I decidiu inaugurar com eles um programa de imigração para o sul movido não apenas por questões de segurança nacional, diante das sucessivas disputas territoriais naquela então erma região fronteiriça, como também por um casamento de interesses políticos, literalmente – filha de Francisco I, da Áustria, a imperatriz Leopoldina tinha sangue germânico. A Alemanha de então era muito diferente da atual. Havia dezenas de reinados, principados, ducados, todos independentes, mas unidos precariamente pelo idioma, que viriam a ser unificados por Bismarck, em 1871. Bem antes disso começou o êxodo, impulsionado pela escassez de terras que apenas garantia sua posse ao primogênito de cada família.
Desde a fundação de São Leopoldo, aproximadamente 300 mil alemães se instalaram no Brasil, mas nem sempre fixaram raízes num único lugar. Depois de colonizar o Rio Grande do Sul, ainda no século 19 eles subiram para Santa catarina, hoje o Estado com a maior população de descendência alemã – mais de 20% do total –, e rumaram para o Espírito Santo, marcando também presença no Paraná e, em menor escala, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pelo caminho foram semeando descendentes e expressivas lideranças em todas as áreas da vida nacional. Firmaram seu nome nessa galeria, entre outros, o ex-presidente Ernesto Geisel, Lauro Müller, ex-ministro da Viação do presidente Rodrigues Alves, e João Henrique Böhm, chefe do Exército de dom José I no Brasil.
Mas o mais importante: foi entre os alemães que a mensagem adventista inicialmente encontrou guarida e fincou raízes no Brasil. Gradualmente, o adventismo começou a se expandir alcançando os brasileiros de origem latina. Fundamental para isso foi o início da publicação de O Arauto da Verdade, em 1900, na língua portuguesa. Tanto que E. H. Meyers chegou a considerar esse fato como “uma nova era para nossa obra na região de fala portuguesa da América do Sul”.[1]
José Lourenço Mendes, comerciante e rizicultor em Campestre, Santo Antônio da Patrulha, RS, foi o personagem que marcou essa transição. Ele tinha cinco irmãs casadas: Maria José e Clara moravam na Fazenda Nova, a seis quilômetros de distância de Campestre, Ludovina e Sofia residiam em Rolante, no mesmo município de Santo Antônio, e Isabel, que além de não aceitar o adventismo, mudou-se para longe dos irmãos. Certamente por influência dos pais, esses irmãos conheciam a Bíblia e a amavam. Eram, portanto, terreno fértil à pregação do evangelho.
Em Taquara, mais ou menos a uns 20 quilômetros de Campestre, os adventistas já se haviam estabelecido. Não se sabe como se deu o primeiro contato deles com José Lourenço Mendes, mas possivelmente tenha se dado por meio de colportores ou de algum membro da igreja de Taquara. De qualquer forma, o nome e o endereço do comerciante de um jeito ou de outro chegaram às mãos dos líderes da Obra.
Em 1904, o pastor Ernesto Schwantes foi a Campestre visitar José L. Mendes, que aceitou prontamente a mensagem adventista. José, acompanhado pelo pastor e desejoso de levar a boa-nova a suas irmãs, dirigiu-se à casa de Saturnino Rabello de Oliveira, casado com Maria José, que igualmente abraçaram a fé adventista. Clara uniu-se a eles, embora o esposo discordasse.
José L. Mendes era um homem inteligente e comunicativo. Logo transformou sua casa num verdadeiro centro evangelístico e passou a pregar ardorosamente para seus fregueses, convidando-os também para participar das reuniões que o pastor Schwantes passou a dirigir numa das dependências da casa do comerciante. Muitos se interessaram, entre os quais Maria Joana do Lago, cujo esposo, João Ferreira do Lago, vulgo João Bonito, fora carrasco de uma das facções políticas que lutavam entre si, no passado. Dizem que, após degolar os vencidos – adultos e crianças –, ele lambia o sangue deles na lâmina da faca.
Certa noite, Maria Joana do Lago convidou o esposo para acompanhá-la a uma reunião na casa de José L. Mendes. Os dois se assentaram nos primeiros lugares da frente, ao lado do corredor. De repente, um perigoso desordeiro, deixando os capangas à entrada, foi à frente e desferiu uma punhalada no pastor Ernesto Schwantes, que conseguiu se esquivar. João Bonito deu um salto instintivo, ficando entre o bandido e o pregador. Apontou uma faca em direção ao ventre do agressor que resolveu bater em retirada, juntamente com seus capangas. O pastor Schwantes continuou o sermão.
Tão logo o adventismo penetrou em Campestre, Dalila Mendes de Souza (sobrinha de João Lourenço) e o esposo visitaram a prima e amiga Maria Emília dos Passos (também sobrinha de José), em Rolante, para falar-lhe sobre a nova religião de seu tio. Os Passos resolveram ir até Campestre para ouvir a mensagem e a aceitaram. Ao regressar, contaram tudo o que haviam aprendido a seus familiares. Como resultado, Adolfo Amador dos Reis, irmão de Maria Emília, também se converteu, tornando-se o líder espiritual de Rolante. A essa altura, o pastor Ernesto Schwantes tinha dois locais de trabalho exclusivamente com brasileiros de origem latina – em Campestre, com José L. Mendes, duas irmãs, os familiares e outros interessados; e em Rolante, com as duas outras irmãs de José, os esposos e filhos, e outras famílias.
A nova religião surgida em Campestre e Rolante, entre os brasileiros propriamente ditos, distinguia-se das outras existentes, dentre outras coisas, pela guarda do sábado, crença na mortalidade da alma, batismo por imersão de pessoas com idade suficiente para entender o que estavam fazendo e abstenção de certos alimentos considerados impróprios para comer (imundos). Além disso, combatiam o álcool, o fumo, os jogos de azar e ensinavam o afastamento dos bailes. Consequentemente, surgiram muitos opositores que começaram a perseguir esses novos crentes, considerando-os fanáticos e esquisitos.
Já no primeiro batismo, que deveria ser realizado no Rio dos Sinos, atrás do morro do Barreiro, no Campestre, a situação ficou complicada. Como o ambiente estivesse muito tenso, o delegado de polícia, a pedido de José Lourenço Mendes, mandou um tenente e seis soldados para manterem a ordem. Reuniram-se no local do batismo uns 80 homens armados de revólveres e facões para matar o oficiante e espancar os batizandos e demais adventistas. Como medida de prudência, a cerimônia foi suspensa e o pastor saiu protegido pelos policiais, voltando para Porto Alegre. Dias depois, entretanto, o batismo foi realizado discretamente. Mas as perseguições continuaram.
A dependência da casa de José L. Mendes, onde as reuniões eram realizadas, ficava a 15 metros da estrada pública. Os desordeiros jogavam foguetes, da estrada, para explodirem o mais próximo possível da sala de cultos. Mas os irmãos continuaram firmes, suportando com fé e paciência todas as injúrias. E a igreja crescia cada vez mais.
José Lourenço Mendes e esposa. A conversão dos Mendes, em 1904, marcou o início da transição do adventismo das colônias alemãs para os brasileiros de origem latina
A ênfase na educação cristã e o espírito missionário das igrejas de Campestre e Rolante produziram muitos líderes dedicados à obra adventista. Em 1925, os irmãos da igreja de Campestre se uniram e cada um contribuiu com um pouco a fim de mandar para o colégio em São Paulo um jovem humilde mas promissor, chamado Roberto Mendes Rabello, filho dos conversos do local, e com 16 anos de idade na época. Anos depois, em 1943, Roberto se tornaria o fundador de A Voz da Profecia, primeiro programa religioso de âmbito nacional, transmitido no Brasil pelo rádio. Como escreveu o Pastor Léo Ranzolin (Revista Adventista, novembro de 1996, p. 7), “a Voz, no Brasil, era a Voz da Profecia. Mas tinha igualmente um duplo significado, pois aquela ‘voz’ era a voz suave, penetrante, que cativou adventistas e evangélicos por quase 50 anos”, a voz de Robeto Rabello. O Pastor Rabello faleceu no dia 16 de agosto de 1996, com 86 anos.
Roberto Rabello, fundador de A Voz da Profecia no Brasil
Da comunidade de Rolante, Irineu Amador dos Reis, Rodrigo Amador dos Reis Filho e José Amador dos Reis saíram para colportar. Os dois primeiros logo voltaram às atividades agrícolas, mas José continuou colportando. O filho de Rodrigo e Ludovina tinha habilidade especial não só para colportar como também para explicar a Bíblia e pregar, por isso convidaram-no para trabalhar como obreiro bíblico, recebendo a credencial em 1914, conforme o relatório da 9ª sessão da Conferência do Rio Grande do Sul, publicado em março daquele ano. No dia 10 de abril de 1920, foi ordenado ao ministério, no fim da memorável 14ª assembléia da Conferência do Rio Grande do Sul. Tornou-se, assim, o primeiro pastor adventista ordenado no Brasil.
“Os esforços longamente expedidos nos primeiros anos de trabalho como colportor e obreiro na campanha gaúcha, muitas vezes exposto aos rigores do clima de inverno, apanhando chuva, dormindo em ambientes precários e se alimentando frugalmente, cobravam agora um pesado tributo.”[2] José Amador dos Reis faleceu no dia 23 de maio de 1935, com 43 anos incompletos, vítima de tuberculose. O valente soldado de Cristo tombou onde começou seu ministério: em Rolante, RS.
José Amador dos Reis, primeiro pastor ordenado no Brasil
Depois das lutas, a vitória
“Só em parte se pode apreciar quão amargos eram esses primeiros acontecimentos [relativos ao início da Obra] naquela época, sendo que os isolados mensageiros, que trabalhavam em lugares muito distantes uns dos outros, dificilmente podiam inteirar-se do progresso feito ou apreciar o significado de tais princípios.”[3]
E as dificuldades e lutas enfrentadas pelos pioneiros ficam evidentes quando investigamos as publicações e relatórios missionários da época. Relatos como estes eram típicos:
“Na manhã de Páscoa, quando eu e minha mulher estávamos de volta de uma visita a uma família interessada, fomos de caminho agredidos a pedras por um grupo de sete pessoas. Entretanto, o Senhor não permitiu que aqueles nos atingissem… Algumas dessas pedras eram de tamanho considerável… Parece às vezes que Satanás tomou posse completa deste povo. Quando passamos pela estrada, fazem uma algazarra, dirigindo-nos de dentro de suas casas chufas e palavras injuriosas… Oxalá o Senhor nos ajude a permanecer fiéis e fazermos a Sua vontade” (Pastor Henrique Haefft. Revista Mensal, junho de 1916, p. 8 e 9).
“Posto que ainda não inteiramente restabelecido da minha enfermidade, empreendi todavia fazer uma visita aos irmãos no município de Blumenau, sendo acompanhado nessa viagem por minha mulher, que desejava conhecer os irmãos daquela região. Partimos a 6 de junho, confiando num tempo sofrível que então fazia, mas que mudou completamente, chovendo durante os dez dias que gastamos para chegar a Benedito Novo. As estradas tornaram-se praticamente intransitáveis, sendo muitas vezes necessário caminhar a pé, visto os animais conseguirem tirar apenas o carro vazio” (Pastor Augusto Rockel. Revista Mensal, setembro de 1916, p. 9).
“Ao partir [de Lençol] deparamos com obstáculos ocasionados pela incessante chuva. Devido a um desmoronamento de barrancos ficou obstruída a linha da estrada de ferro, razão porque enfim vimo-nos na conjectura de continuar nossa viagem a pé até Hansa. Passamos mal de viagem – e não era para menos –, mas alcançamos o nosso destino, onde encontramos todos os irmãos alegres” (Pastor Francisco Belz. Relatório de viagem na Revista Mensal, junho de 1918, p. 8).
“Uma noite ao voltar para casa, fui inesperadamente assaltado por um jovem que, com mais três outros, me vedava o caminho. Pondo-me a faca a distância de duas polegadas do peito, mandou que lhe desse a minha palavra de não continuar com as conferências. Felizmente escapei com vida. Mais tarde veio este mesmo moço acompanhado do inspetor a fim de pedir desculpa, e prometer que nunca mais haveria de estorvar as nossas conferências” (Pastor Francisco Belz, depois de dirigir uma palestra (conferência) em Jacu-Assu, SC. Revista Mensal, junho de 1919, p. 9).
Poderíamos prosseguir com relatos de outrora, mas já é o suficiente para perceber as lutas que nossos antepassados enfrentaram. “Línguas desconhecidas, solidão, isolamento, chegada de literatura com atraso, falta de dinheiro, matas intransitáveis, planícies desertas, lodo, chuva, frio, calor, fome, doenças, açoites, furtos, prisão e a necessidade de ganhar o próprio sustento, são palavras que, juntamente com muitas outras semelhantes, deveríamos usar para nos referir à história dos primeiros esforços.”[4]
“A existência de igrejas e grupos alemães de Muçuri e Teófilo Otoni, norte de Minas Gerais, ao Rio Grande do Sul, a partir de 1895, o contato do pastor Ernesto Schwantes, em 1904, com José Lourenço Mendes, do qual surgiram as igrejas de Campestre e Rolante (cujos membros eram todos de procedência latina), o funcionamento de uma escola paroquial em cada congregação, grande ou pequena, para inculcar nas crianças os princípios cristãos e os ideais missionários, a publicação do Arauto da Verdade em português e a mudança da Casa Publicadora Brasileira para São Paulo, em 1907, em condições de fornecer a literatura necessária, criaram condições para a pregação do adventismo de leste a oeste e de norte a sul do vasto território nacional.”[5]
A PASSOS LARGOS
A obra adventista iniciada em Gaspar Alto e quase simultaneamente em outras partes do Brasil avançou a passos largos. Na Igreja de Gaspar Alto foi estabelecida, em 1897, a primeira escola missionária adventista brasileira, dirigida inicialmente por Guilherme Stein Jr. Dela saíram colportores, professores e alguns pastores que, “unidos no mesmo ideal, trabalharam em regiões diversas espalhando a mensagem adventista pelo Brasil afora”.[1]
Por volta de 1900 – cinco anos depois da sua organização – a Igreja de Gaspar Alto já tinha mais de cem membros. O aumento crescente de interessados e novos conversos, principalmente nos estados sulinos, no Espírito Santo e Rio de Janeiro, levou a Associação Geral a providenciar um pastor efetivo para o Brasil: Huldreich F. Graf.
Natural da Alemanha, Graf foi morar nos Estados Unidos, onde aceitou a mensagem adventista, sendo ordenado pastor em 1891. Foi enviado ao Brasil pela Associação Geral, chegando ao Rio de Janeiro em quatro de outubro de 1895. Durante 12 anos trabalhou como evangelista, assumindo depois a presidência da Missão Brasileira e da Associação Rio-Grandense.[2] Em maio de 1902, a Missão Brasileira passou a ser Associação Brasileira, então com 900 membros, e o pastor Graf continuou como presidente. Em 1906 foi organizada a União Sul-Americana, e a Associação Brasileira foi dividida em três áreas:
1. Associação Rio Grande do Sul (com mais de 300 membros), com o pastor Graf como presidente.
2. Associação Santa Catarina-Paraná (com cerca de 400 membros), com Waldemar Ehlers como presidente.
3. Missão de São Paulo, com sede em Rio Claro (com 20 membros), tendo como presidente Frederick W. Spies.
Graf foi um grande exemplo de pioneiro. Seus trabalhos como pastor lhe custavam longas e contínuas viagens. Os caminhos naquele tempo eram pouco conhecidos e difíceis, e os meios de locomoção mais rápidos e seguros eram o cavalo, a mula ou o burro. Sobre sua viagem mais longa escreveu um livro chamado Cem Dias no Lombo de Uma Mula. Foi nessa viagem que o pastor Graf encontrou a família Kümpel, na região de Passo Fundo, RS. Ali ficou durante 11 dias e batizou 40 pessoas, dentre as quais os cinco filhos do casal Guilherme e Helena Kümpel, pioneiros da obra adventista no Rio Grande do Sul. Calcula-se que o pastor Graf tenha viajado, durante seus 12 anos de ministério, cerca de 25 mil quilômetros em cima de burro. Mais que meia volta ao mundo pela linha do Equador!
Em certa ocasião, viajava pela região de Taquari em busca de alguns crentes. À tarde percorria uma trilha aberta em um bosque, quando a mula desviou para a esquerda por um caminho estreito. O pastor Graf tentou fazer o animal voltar ao caminho principal, sem sucesso. Conformado, disse ao animal:
– Eu não quero ser como Balaão. Vá por onde Deus te guiar.
Depois de mais ou menos uma hora, chega à casa de um colono.
– Vim aqui por que a mula me indicou este caminho. Sou um missionário adventista e penso que Deus me guiou à tua casa com algum propósito.
– Graças a Deus! – responde o colono entusiasmado. – Faz quase dois anos que estamos pedindo ao Senhor que nos envie um missionário adventista!
O pastor Graf ficou três dias naquela casa, ao final dos quais realizou o batismo da família. Mais tarde, organizou-se ali uma igreja.
Noutra ocasião – relata Héctor Peverini – Graf viajava perto da cidade de Cachoeira do Sul, acompanhado por outro missionário. De repente, começou uma tormenta que obrigou os dois a se refugiarem num bar. Os homens que estavam bebendo, ao notar que os dois eram missionários, começaram a caçoar de Deus e da religião. O pastor Graf os repreendeu suavemente:
– Meus amigos, vocês não deviam falar assim do Deus dos Céus.
– Se há um Deus no Céu – diz arrogantemente um homem com uma garrafa de cachaça numa das mãos e um cigarro de palha apagado na outra, – quero ver Ele acender o meu cigarro.
Dizendo isso, estende a mão para fora da casa, no mesmo instante em que um raio o fulmina completamente.
Anos mais tarde, quando o pastor Ernesto Roth dirigia uma série de conferências em Picada do Rio, muitas pessoas ainda recordavam do trágico incidente que inspirou respeito a Deus e a Seus ministros. Mas as perseguições continuaram em outras regiões.
Certa ocasião, o pastor Graf, auxiliado pelo pastor Ernesto Schwantes, dirigia reuniões em uma tenda, próxima à cidade de Rolante. Mas um caboclo da região não estava contente com o grande número de pessoas que participavam dos encontros. Empenhou-se em impedir o avanço da mensagem adventista. Numa quinta-feira à noite, quis impedir a entrada do povo à tenda dizendo, aos gritos, que amarraria os missionários protestantes à cauda de um burro e os arrastaria pela colônia até acabar com eles.
Na noite do sábado seguinte, o homem foi a um baile. De repente, começou uma briga. Um tiroteio. E o caboclo acabou sendo atingido por várias balas no ventre. No hospital, antes de morrer, sussurrou: “Eu blasfemei contra Deus e contra os adventistas, por isso tenho que morrer tão miseravelmente.”
“Foi exatamente em Rolante (Fazenda Passos) que surgiu uma das mais fortes igrejas, que produziu cerca de duas centenas de obreiros que ajudaram a levar a mensagem para todas as fronteiras do Brasil.”[3]
Huldreich Graf batizou mais de 1400 conversos e organizou mais de vinte igrejas durante seus 12 anos de trabalho no Brasil. Pôs em marcha várias escolas, uma das quais foi a base do Instituto Adventista de Ensino (hoje Unasp, campus São Paulo) e contribuiu, também, para a criação da primeira casa editora do Brasil. Depois de retirar-se do trabalho por motivos de saúde e regressar aos EUA por algum tempo, voltou ao Brasil para passar aqui seus últimos anos de vida.
Huldreich F. Graf foi o primeiro ministro designado para trabalhar no Brasil
Outro homem que contribuiu grandemente para a consolidação da obra adventista no Brasil foi Frederick Weber Spies. Spies chegou ao Brasil em 1896, um ano depois de Graf. Era norte-americano de origem alemã. Aceitou a fé adventista em 1888, aos 22 anos, e trabalhou quatro como colportor (vendedor de literatura religiosa). Foi enviado à Alemanha para dirigir a obra de colportagem naquele país, de onde foi chamado à América do Sul.
Trabalhou os primeiros anos como pastor nos estados do Espírito Santo e Minas Gerais. Em 1900 foi transferido para Santa Catarina. Viajou, às vezes acompanhado por sua esposa, milhares de quilômetros nesse Estado, como também no Paraná e Rio Grande do Sul. Em 1903 foi para o Rio de Janeiro. De 1917 até 1923, foi presidente da União Sul-Brasileira. O território foi dividido, então, em duas grandes unidades administrativas. Dirigiu também a União Este do ano de 1923 a 1927. De 1927 a 1932 foi gerente da Casa Publicadora Brasileira.
Spies foi um dos principais dirigentes do movimento adventista no Brasil durante suas três primeiras décadas. Foi também um dos pastores adventistas que mais viajaram pelo País nos tempos em que os meios de locomoção eram precários. Em um período de quatro anos percorreu 950 quilômetros por água, 800 de trem e 2.700 em lombo de burro.
“Aqueles dias primitivos” – escreveu Spies na Revista Mensal de setembro de 1924 – “requeriam sacrifícios de toda espécie: longas e penosas viagens em lombo de burro ou a cavalo, e a ausência de casa de dois a seis meses cada vez. Eram poucas as semanas passadas em casa em cada ano; porém, o trabalho não foi inútil… podemos exclamar: Quantas coisas tem feito Deus!”
Frederick Weber Spies foi um dos principais dirigentes da Igreja Adventista durante suas três primeiras décadas no Brasil
A Mensagem Impressa
No Brasil, a obra adventista deve seu início e expansão, sem dúvida, à página impressa e ao trabalho dos colportores. Além do pioneiro Albert B. Stauffer, dois irmãos colportores – Alberto e Frederico J. Berger – iniciaram no Rio Grande do Sul, em 6 de agosto de 1895, o seu plano de vendas de literatura nas colônias alemãs. Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Espírito Santo também foram trabalhados por esses dois homens.
Segundo o Dr. Gideon de Oliveira, em artigo publicado no livro História de Nossa Igreja, “esses pioneiros da colportagem eram verdadeiros heróis que rasgavam o sertão em suas montarias, levando seus livros, vivendo intrepidamente cada dia as surpresas e os percalços da jornada aventureira – calor, fome, frio, chuva torrencial, lama, ventania. Muitas vezes dormindo ao relento e expostos a animais perigosos, mas não desanimavam em sua nobre missão”.
Nas pegadas desses pioneiros, seguiram Henrique Tonjes, Germano Conrado, Emílio Froeming, Hans Mayr, Saturnino Mendes de Oliveira, Antônio L. Penha, José Negrão, Hermínio Sarli, André Gedrath e muitos outros que propagaram a mensagem adventista nos diversos cantos brasileiros.
A colportagem no Brasil começou a se desenvolver mais a partir do momento em que se passou a publicar literatura em português. Inicialmente, foi impresso o Arauto da Verdade, periódico editado de 1900 a 1913; foi substituído depois pela revista Sinais dos Tempos, até 1918, quando passou a ser publicada a revista O Atalaia e, depois, novamente Sinais dos Tempos.
Grande impulso foi dado à evangelização com a publicação de revistas em português. Na foto, o primeiro número de O Arauto da Verdade, que se tornou posteriormente O Atalaia e depois, novamente, Sinais dos Tempos
Para melhor atender à obra de publicações, foi decidido o estabelecimento de uma editora denominacional no Brasil. Por sugestão do pastor Graf, foi instalada junto à Escola Missionária de Taquari, no Rio Grande do Sul. Assim, conseguiu-se economia de locação e proporcionou-se trabalho aos alunos do colégio.
A fim de conseguir dinheiro e um prelo para dar início às publicações, o pastor John Lipke viajou aos Estados Unidos e, em várias igrejas daquele País, falou sobre as necessidades da Obra no Brasil. Seu apelo foi atendido: recebeu 1.500 dólares em donativos, e o Emmanuel Missionary College, de Barrien Springs, doou um prelo manual para a imprensa a ser fundada em Taquari.
Editora adventista em Taquari e a réplica do primeiro prelo, doado pelo Emmanuel Missionary College
George Sabeff, que fora aos Estados Unidos estudar Medicina, ganhava seu sustento trabalhando na Sociedade Internacional de Tratados. Ouvindo o apelo de John Lipke, veio ao Brasil trazendo consigo o material necessário ao funcionamento da editora. Com sua experiência em tipografia, Sabeff montou o prelo, as instalações correspondentes e passou a fazer a composição das primeiras publicações, tendo Augusto Preuss como ajudante. Augusto Pages foi convidado para ser o gerente da Sociedade Internacional de Tratados do Brasil.
A editora de Taquari produziu a primeira edição do Arauto da Verdade em 10 de maio de 1905. Outros periódicos se seguiram: o Advent Arbeiter, Rundschau der Adventisten, para os adventistas alemães e, a partir de 1906, a Revista Trimensal, precursora da Revista Mensal (1908). A Revista Adventista começou a ser publicada em 1931. Um opúsculo de trinta e duas páginas, A Segunda Vinda de Cristo, foi a primeira obra impressa; o primeiro livro foi A Vinda Gloriosa de Cristo.
No fim de 1907, a tipografia mudou-se para São Bernardo (hoje Santo André, SP), num local onde viria a funcionar a Casa Publicadora Brasileira, até ser transferida para Tatuí (em 1985), onde se encontra até hoje. São Bernardo, por ser mais central, facilitava o transporte e a divulgação da literatura nos vários Estados. Em 1908, chegaram dois prelos movidos com motor a gasolina, acelerando a produção. Mas, mesmo assim, o trabalho não era nada fácil pois “cada um tinha que, além de redigir, incumbir-se de traduzir e providenciar as colaborações, também arrumar as ilustrações e incumbir-se de outras tarefas, hoje ao encargo do departamento de arte e diagramação, cuja ausência naquele tempo fazia muita falta, aumentando e dificultando muito nosso trabalho”[4], escreveu o pastor Luiz Waldvogel.
Casa Publicadora Brasileira em Santo André (de 1907 a 1985) e em Tatuí
Hoje a igreja na Divisão Sul-Americana conta com os serviços de duas publicadoras. A Editora Sudamericana, em Buenos Aires, Argentina, é responsável pela literatura para os sete países de língua hispânica no continente. A Casa Publicadora Brasileira, em Tatuí, SP, atende o Brasil e outros países de fala portuguesa.
A Obra Educacional
Onde chega a mensagem adventista logo surgem escolas e colégios. No Brasil não foi diferente. Já no ano de 1896, em Curitiba, PR, passou a funcionar o primeiro Educandário Adventista dirigido pelo professor Guilherme Stein Jr., auxiliado por Vicente Schmidt, chegando a alcançar uma matrícula de 120 alunos logo no primeiro ano de existência.
Escola Internacional de Curitiba, 1896
Em 15 de outubro de 1897, foi fundada a primeira Escola Missionária no Brasil, em Gaspar Alto, sob a direção do professor Guilherme Stein Jr., substituído em 1900 por John Lipke, a convite dos pastores Spies e Thurston.
O pastor Renato E. Oberg, juntamente com os pastores R. R. Figuhr e Rodolfo Belz, visitou Gaspar Alto em fevereiro de 1944 – “a mais antiga comunidade adventista no Brasil”, escreveu ele na Revista Adventista de setembro de 1944, página 23. Na ocasião, conta o pastor Oberg, eles tiveram o “prazer imenso de conversar com alguns daqueles irmãos que viram os alvores da mensagem angélica em nosso torrão nacional”.
Bernardo Loeschner, um dos pioneiros ainda vivo na época, mostrou aos pastores um caderno bastante antigo, cujas páginas amareladas revelaram um conteúdo bastante precioso: era o livro de registros que continha a ata da primeira reunião da Junta Escolar da primeira escola paroquial adventista no Brasil. Abaixo, um trecho da ata:
“História da fundação da Escola Adventista de Brusque.
“‘Pois a sabedoria entrará no teu coração, e a ciência será suave à tua alma; o bom siso te guardará e a inteligência te conservará.’ Prov. 2:10 e 11.
“No dia 15 de outubro de 1897 esteve reunida a igreja dos adventistas do sétimo dia, em Brusque, na casa do irmão Augusto Olm, a fim de tratar da fundação de uma escola. Assistiram a esta reunião os seguintes membros: Augusto Olm, ancião; Reinoldo Belz, diácono; Francisco Belz, secretário; Guilherme Belz; Guilherme Belz Filho; Guilherme Wagner; Francisco Peggau; Bernardo Loeschner; Ludovico Log; Frederico Peggau; H. F. Graf, superintendente do campo missionário brasileiro; A. L. Stauffer, missionário; e G. Stein, professor.”
Na escola de Gaspar Alto o ensino era ministrado em alemão. De manhã funcionava o nível primário e à tarde, o secundário. O edifício escolar estava dividido em duas partes, uma para a igreja e outra para as atividades do colégio. Em 1900, já dispunha de um dormitório para alunos internos. Funcionava como escola agroindustrial, como os demais colégios adventistas que posteriormente foram estabelecidos no Brasil. Os alunos trabalhavam 26 horas semanais e conseguiam assim pagar seus estipêndios incluindo alojamento, pensão e estudo.[6]
William H. Thurston apresentou à Conferência Geral, em 1900, um relatório sobre a escola de Gaspar Alto: “Nossa Escola Missionária está localizada a cerca de 13 quilômetros da cidade mais próxima, em um belo vale, pelo qual escoa um cristalino regato, e está circundada pela influência celestial de uma grande igreja. …Temos 60 acres de terra, um dormitório para alojar adequadamente 40 alunos, e um edifício escolar, tudo já totalmente de nossa propriedade.”[7]
Primeira Escola Missionária do Brasil, 1897
A segunda Escola Missionária foi fundada em Taquari, RS, em agosto de 1903, tendo como diretor o professor Emílio Schenk. Posteriormente foi transferida para São Paulo, por sua melhor localização. Entre os alunos que estudaram nessa escola missionária estavam Leopoldo Preuss, Saturnino Mendes de Oliveira e José Amador dos Reis, o primeiro pastor brasileiro a ser ordenado ao ministério.
Em 1915 foi estabelecido o Seminário Adventista, conhecido depois como Colégio Adventista Brasileiro (CAB), Instituto Adventista de Ensino (IAE) e, atualmente, Centro Universitário Adventista, campus São Paulo. Seus fundadores foram John Lipke e John Boehm. O primeiro professor foi Paulo Henning, que no dia 4 de agosto de 1915 ministrou a primeira aula a 12 alunos.
Hoje são três campi (São Paulo, Engenheiro Coelho e Hortolândia) que compõem o Centro Universitário Adventista, aprovado pelo Governo Federal, cujo decreto foi publicado no Diário Oficial da União, no dia 10 de setembro de 1999.
Colégio Adventista Brasileiro e o atual Unasp, campus Engenheiro Coelho
Hoje a igreja no Brasil possui centenas de instituições de educação, entre escolas primárias, secundárias e universidades, que se somam às milhares de escolas e universidades adventistas espalhadas pelo mundo.
A Obra Médico-Missionária
Paralelamente à pregação do evangelho e ao estabelecimento de escolas, o adventismo procura ensinar ao povo os princípios de uma vida mais sadia, à base de alimentos naturais e abstenção de tudo que seja prejudicial ao corpo.
Quando o pastor Huldreich Graf chegou ao Brasil – em 1895 – procurou ensinar a importância dos tratamentos naturais, chegou mesmo a ministrá-los, quando não havia outros recursos disponíveis.
Foi em 1900 que o Dr. Abel Gregory, médico e dentista norte-americano, veio ao Brasil como missionário voluntário, para auxiliar no desenvolvimento da Obra no Rio Grande do Sul. Graças a seus serviços foram derrubados muitos preconceitos contra a Igreja Adventista.
Ernesto Bergold, impressionado com os princípios de saúde adventistas, converteu-se ao adventismo e decidiu manter por conta própria um hospital para administração de hidroterapia e tratamentos naturais, em Taquara, RS. O estabelecimento funcionou até 1928, no local onde hoje se encontra o Instituto Adventista Cruzeiro do Sul (IACS). (Os filhos de Ernesto – Adolfo e Ernesto – desempenharam importante papel no início das atividades da empresa denominacional que viria a ser conhecida como Superbom, produtos alimentícios naturais.)
O trabalho de assistência social aos povos do sertão e aos índios Carajás, na Missão do Rio Araguaia, foi prestado em parte pelo Pastor A. N. Allen, em 1928. Maior impulso, contudo, foi dado a este setor a partir do ano de 1953, quando foi inaugurada a lancha Pioneira, pilotada pelo enfermeiro-missionário Lair Montebelo. Só no setor de Araguacema, em quatro anos de atividade, foram atendidas mais de 23 mil pessoas com tratamentos, instruções e medicamentos.
No vasto Amazonas, a lancha médico-missionária Luzeiro I, pilotada pelo missionário Leo B. Halliwell e sua esposa Jessie, possibilitou também a execução de grande trabalho filantrópico na região banhada pelo Rio Amazonas e seus afluentes. O pastor Halliwel e sua esposa, a partir de 1931, dedicaram 25 anos ao trabalho entre os habitantes carentes do Vale do Amazonas. Atenderam 250 mil pessoas, muitas das quais se converteram ao adventismo. Ainda hoje o trabalho dos Halliwel é lembrado pelo povo da região.
Não havia ainda Igreja Adventista quando Leo e Jessie foram trabalhar no Rio Amazonas. Em 1956, porém, já havia 22 igrejas, 56 escolas sabatinas, três mil membros batizados, 15 escolas elementares, 15 professores que ensinavam cerca de mil alunos, um hospital, dois médicos e enfermeiras, 15 pastores e evangelistas.
Em 1959 já eram quatro Luzeiro servindo no Vale do Amazonas e outra lancha atendendo aos habitantes próximos ao Rio Parnaíba, na divisa do Maranhão com o Piauí.
Em 1946, no Rio São Francisco, a lancha Luminar, por dez anos pilotada pelo pastor Paulo Seidl, prestou assistência a cerca de 46 mil doentes nos Estados da Bahia e Minas Gerais. Quase na mesma época, Benito Ribeira atendia as populações pobres e doentes do Vale do Rio Ribeira, em São Paulo, com a lancha Samaritana.
Leo e Jessie Halliwel, os missionários do Amazonas
Em 1994, a Igreja Adventista contava com 25 instituições de saúde, 1.004 leitos e 3.862 obreiros e funcionários. Em quatro anos (90-94) foram atendidos mais de 200 mil pacientes, que tomaram conhecimento dos princípios de saúde adventistas.
Por mais de duas décadas a igreja promove o Dia Sem Fumar e Sem Beber. Esse programa foi iniciado no Chile, pelos jovens adventistas, tendo se espalhado por toda a América do Sul. Milhares de jovens, desbravadores e alunos das escolas adventistas saem às ruas nesse dia convidando o povo a não fumar e não beber, expondo os males desses vícios.
Além disso, as Escolas de Recuperação de Alcoólatras, os Cursos Como Deixar de Fumar e Beber, palestras sobre saúde e outras “tem ajudado milhares de pessoas a vencerem o vício … e aceitarem a Cristo como seu Salvador Pessoal”.[8]
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“Por alguns anos, os cientistas têm-se interessado em estudar a saúde dos adventistas… Por mais de cem anos os adventistas têm insistido na importância da saúde e da dieta, e da necessidade de moderação na ingestão de alimentos ricos em açúcar e gordura saturada… Em quase todas as doenças de importância, os adventistas estão muito abaixo da média no que diz respeito ao risco. Algumas diferenças são surpreendentes, como por exemplo, na enorme redução do risco do infarto do miocárdio para homens, que cuidadosamente seguem as idéias de saúde de sua Igreja… Nas informações obtidas… podemos observar que um homem adventista, cuja idade esteja entre 35 e 40 anos, na Califórnia, pode esperar viver seis anos mais do que seu companheiro mediano. E ele não apenas vai viver mais, provavelmente vai viver melhor durante esse período… Essa melhora, em expectativa de vida, é maior do que todos os esforços em saúde pública conseguiram junto à população nos últimos setenta anos.”[9]
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“Ao recapitular a nossa história passada, havendo revisado cada passo do progresso até ao nosso nível atual, posso dizer: louvado seja Deus! Ao ver o que Deus tem obrado, encho-me de admiração e de confiança na liderança de Cristo. Nada temos para recear quanto ao futuro, a menos que nos esqueçamos a maneira em que o Senhor nos tem guiado, e os ensinos que nos ministrou no passado” (Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 3, p. 443).
Texto do jornalista Michelson Borges.