terça-feira, 22 de outubro de 2013

Serpentes de bronze no culto cristão

Estou lendo “Igreja Simples – retornando ao processo de Deus para fazer discípulos” (Editora Palavra, Brasília, 2011). O livro é fruto de uma pesquisa que concluiu o seguinte: igrejas saudáveis são igrejas com um programa simples de discipulado. Ao contrário, igrejas “doentes” são congestionadas, complicadas, sobrecarregadas com inúmeros programas e eventos.
Os autores usam o exemplo de Ezequias para desafiar a igreja de hoje a fazer uma reforma de volta à simplicidade.


A Reforma de Ezequias
O rei Ezequias trouxe o povo de Deus de volta ao Senhor através de uma grande reforma. Ele removeu os “lugares altos”, os postes-ídolos, e jogou fora entulhos de deuses que competia pela atenção do povo (II Rs 18:4).

Até aí tudo bem. No entanto, Ezequias fez algo radical, que muitos líderes de igreja teriam dificuldade de fazer hoje. Ele destruiu a serpente de bronze de Moisés. Uma serpente moldada pelo grande líder histórico, feita por ordem do próprio Deus.

A princípio, a serpente tinha utilidade: ela representava a salvação para as pessoas mordidas pelas cobras venenosas (Nm 21: 6-8). Mas a praga das serpentes passou, aquela estátua foi guardada, e passou a ser idolatrada.

Como surgem as serpentes de bronze
O processo funciona assim: alguém bem intencionado introduz um elemento no culto ou na vida religiosa. A princípio, aquilo é útil, faz sentido e abençoa vidas. Mas as circunstâncias mudam e o que era útil se torna um estorvo sem sentido. Com o tempo, aquela “relíquia sagrada” passa a ter virtude em si mesma, e torna-se objeto de veneração. Pronto: aí está mais uma serpente de bronze intocável.

Ezequias se livrou da serpente porque se tornara um entulho; as pessoas passaram a adorá-la, desviando a atenção do Salvador real. O que era algo bom se tornara um ídolo. Em muitas igrejas, coisas originalmente criados para dar vida podem se tornar entulhos. Programas, rotinas e métodos se tornam um fim em si mesmos. Mantê-los passa a ser objetivo maior, ainda não haja mais utilidade ou sentido.

Para Ezequias, eliminar a serpente de bronze talvez não tenha sido uma decisão popular, especialmente em meio a religiosos fincados no tradicionalismo. Assim também, reformas profundas em meio ao povo de Deus são difíceis. Mas o ato de Ezequias agradou a Deus, pois não houve rei como ele nem antes nem depois (II Rs 18:5). As igrejas necessitam de Ezequias modernos que não temam eliminar o desnecessário, o que desvia o foco, o que se tornou uma barreira para a adoração a Deus.

Os bem-intencionados defensores de serpentes
Você consegue imaginar quantas reuniões de comissão seriam necessárias para acabar com a serpente de bronze hoje? Você consegue ouvir os argumentos dos mantenedores da serpente?

“Isso sempre esteve aí! Por que mudar agora?”
“Quem você pensa que é para retirar algo que Moisés colocou?”
“Isso faz parte de nossa história, de nossa ‘identidade’”
“Você é jovem, e não sabe o significado dessa serpente sagrada!”

Essas pessoas são movidas por nobres sentimentos e motivos aparentemente razoáveis. Mas quando confrontamos as “serpentes” com o objetivo principal da igreja, vemos claramente que elas se tornaram obstáculos.

Hoje, comissões se reúnem para discutir e votar o número de cadeiras na plataforma, a cor do terno dos diáconos e tantos outros temas menores! De acordo com o Manual da Igreja, as comissões administrativas da igreja devem ter como item primário a obra de “planejar e promover o evangelismo em todos os seus aspectos”. E tudo o que não contribui para o objetivo, desvia o foco.

Não faz muito tempo ouvi uma discussão antes de participar de uma Santa Ceia. O tema era: devemos manter aquele ritual de lavar as mãos dos oficiantes? Naquele dia, os pães já estavam todos partidos e ninguém tocaria neles. Mas os anciãos acharam melhor manter o ritual “faz-de-conta” de lavar as mãos dos oficiantes, porque “sempre foi assim”.

E mais recentemente, soube de uma comissão que se reuniu às pressas para discutir um tema importantíssimo: a retirada do púlpito durante um evangelismo na igreja! A equipe de evangelismo queria a plataforma sem púlpito e sem cadeiras, mas os líderes da igreja não concordaram com isso, e seguiu-se um longo e acalorado debate.

Perdemos muito tempo com as serpentes de bronze. Elas tomam nosso tempo, nossa energia e nossos recursos. Não somos curadores de museu, somos testemunhas do Deus vivo num mundo dinâmico. A igreja é um bote salva-vidas num mar revolto, um pronto-socorro em plena atividade, não um “CTG* adventista”. Reunimos-nos semanalmente por vários motivos nobres, mas esses motivos não incluem o “manter a serpente de bronze” sacralizando formas.

Criando novas serpentes
O problema não se refere apenas a coisas antigas. Somos tentados a criar novas serpentes a cada nova geração. A cultura moderna da “promoção de eventos” é um exemplo disso.

Existem eventos na igreja que são bem intencionados, mas completamente fora de foco. Todos se dedicam exaustivamente ao evento, e, ao final, o objetivo principal não é alcançado – percebe-se que aquilo contribuiu pouco ou quase nada para a missão da igreja.

Cria-se uma espécie de competição interna: “O Acampamento de Jovens desse ano foi ótimo, o do ano que vem tem que superar!” Então, a coisa se torna cada vez mais complicada, grandiosa, exibicionista... e ai de quem ousar tocar nessa nova serpente! Se no próximo evento não houver o mesmo formato pirotécnico e helicópteros sobrevoando, será um “fracasso”.

E, para sacralizar a nova serpente, lançamos mão do discurso espiritual: “foi uma bênção!” Ainda que não tenha sido bênção e não tenha contribuído em nada para o Reino de Deus.

Descongestionando o culto
Uma liturgia complexa, um culto complicado, são sintomas de fraqueza. "À medida que aumenta em pompa, a religião declina em eficácia" (Educação, 77).

Ellen White alerta que “a formalidade tem tomado o lugar do poder, e sua simplicidade se perdeu numa rotina de cerimônias.” (Evangelismo, 293) E ela revela um fenômeno que ocorre no culto: “As cerimônias tornam-se numerosas e extravagantes, quando se perdem os princípios vitais do reino de Deus.” (Evangelismo, 511)

A história do povo de Deus mostra que as cerimônias e rituais se multiplicam à medida que as pessoas se afastam do Senhor (ver Ellen White, O desejado de todas as nações, 29; O grande conflito, 55). Em suma, um culto complicado é mau sinal.

O Manual da Igreja Adventista diz: “Não prescrevemos uma fórmula ou ordem específica para o culto público. Em geral, uma ordem de culto breve ajusta-se melhor ao verdadeiro espírito de adoração. Devem-se evitar longos preliminares.” Além disso, o mesmo Manual traz duas formas sugestivas de culto, e não liturgias inflexíveis. Uma dessas formas é a breve.

Se você já experimentou sugerir adaptações e mudanças na liturgia, certamente já percebeu inúmeras serpentes, antigas, tradicionais, mas totalmente complicadas, inúteis e sem sentido. O culto torna-se sem sentido quando trai o seu papel de conduzir o povo a Deus e à vida. O culto torna-se sem sentido quando, para mantê-lo, oprimimos, sufocamos e dividimos os adoradores.

O culto se torna sem sentido quando, para combater o culto epicurista-hedonista, promovemos o culto estóico-sofrido, onde o conforto, a objetividade, a beleza artística e o prazer são considerados inimigos da espiritualidade. Então, como a opinião do adorador pouco importa, soterramos a adoração sob entulhos litúrgicos destituídos de significado. E quando o adorador reclama, colocamos a culpa na sua suposta falta de “espiritualidade” e repetimos infinitamente que o culto é “para Deus, não para você” (apesar do sermão e de boa parte das músicas e hinos serem direcionado às pessoas...).

Resumindo os princípios da simplicidade e da objetividade, Ellen White escreveu: “As formalidades e cerimônias não devem ocupar tempo e energias que devam por direito ser dedicados a assuntos mais essenciais.” (Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes, 270)

Não há virtude em acumular cerimônias e tornar o culto longo e sofrido. A espiritualidade do culto não é medida pelo grau de descontentamento e desconforto das pessoas. Precisamos promover uma reforma, retornando à simplicidade e à objetividade no culto, sem “serpentes de bronze”.

“Quando os professos cristãos alcançam a alta norma que é seu privilégio alcançar, a simplicidade de Cristo será mantida em todo o seu culto. As formas, cerimônias e realizações musicais não são a força da igreja.” (Evangelismo, 512)
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(*Os Centros de Tradição Gaúcha são sociedades que visam ao resgate e à preservação dos costumes tradicionais dos gaúchos. É uma bela iniciativa cultural tradicionalista, mas que não serve de modelo para o funcionamento de uma igreja cristã.)

Via Adoração Adventista

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