Apóstolo João, o Teólogo, na Ilha de Patmos: quadro pintado pelo russo Andrey Mironov, em 2012. João foi o discípulo mais próximo de Jesus. Imagem: Wikimedia
O maior livro profético da Bíblia, o Apocalipse, é declarado ser uma “revelação de Jesus Cristo” dada por Deus para benefício da igreja (Ap 1:1). Essas palavras comportam dois sentidos fundamentais: um subjetivo, que aponta Jesus como o autor da revelação, e outro objetivo, que faz dele o tema da revelação. Isso significa que a revelação é feita por Jesus e é acerca dele. O mesmo texto faz referência ao instrumento humano usado por Jesus para que a revelação se efetivasse: “seu servo João”. Quem foi ele?
Bem, o Novo Testamento se refere a pelo menos quatro pessoas que tiveram esse nome: (1) João Batista, que morreu antes da crucifixão de Jesus; (2) um parente do sumo sacerdote Anás e inimigo do evangelho (At 4:6); (3) João Marcos (At 12:12), autor do segundo evangelho; e (4) o apóstolo João, o discípulo amado e autor do quarto evangelho. As evidências apontam para o apóstolo João como o escritor do Apocalipse. A tradição primitiva assim o reconhece, e todos os escritores cristãos até o 3º século confirmam esse fato. Também acredita-se que João tenha passado seus últimos anos em Éfeso.
Entretanto, há os que alegam a existência de outro influente João na igreja na Ásia, ao fim do 1º século, que teria escrito o Apocalipse. Eles têm por base o seguinte testemunho de Papias, bispo de Hierápolis, registrado por Eusébio de Cesareia: “Eu inquiria acerca das palavras dos presbíteros o que André, ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé, ou Tiago, ou João, ou Mateus, ou qualquer outro dos discípulos do Senhor, disseram, e o que Aristion e o presbítero João, os discípulos do Senhor, dizem” (História Eclesiástica, III, 39.3, 4). Aparentemente, dois cristãos de destaque chamados João são referidos no texto: o apóstolo e um presbítero. Supõe-se que o primeiro teria escrito o evangelho, e o segundo, o Apocalipse.
Todavia, uma das formas de entender a declaração de Papias é ver nela a presença de dois grupos de pessoas com o nome João em cada grupo, mas com a instância de haver apenas uma pessoa com esse nome, mencionada duas vezes. Os líderes de ambos os grupos são chamados de discípulos do Senhor. Os do primeiro grupo disseram, isto é, tinham vivido antes de Papias e anunciado as palavras de Jesus; os do segundo grupo dizem, isto é, viviam no tempo de Papias. Se, como se acredita, o apóstolo João alcançou o fim do 1º século, então Papias, que nasceu por volta de 70, foi seu contemporâneo e pode tê-lo ouvido de viva voz. Nesse caso, o apóstolo é tanto o primeiro João citado como o segundo, com a diferença de que, do corpo apostólico, ele era o único sobrevivente.
Outros pensam que João não poderia ter escrito o livro do Apocalipse no fim do 1º século por ter sido morto muito antes pelos judeus, a exemplo do que aconteceu com seu irmão Tiago (At 12:1, 2), o que teria cumprido a previsão de Jesus a respeito deles (Mc 10:38, 39). Mas tal previsão não significa que João tivesse morrido ao mesmo tempo que seu irmão. Vários anos depois do martírio de Tiago, ele é mencionado por Paulo como sendo um dos baluartes da igreja (Gl 2:9). Se ele também tivesse enfrentado o martírio, o que é improvável, teria sido bem mais tarde, pois o próprio Apocalipse dá a entender que, ao ser escrito, os judeus ainda perseguiam os cristãos.
A verdade é que não foi requerido que João fosse martirizado para que as palavras de Jesus se cumprissem. O Salvador poderia perfeitamente estar se referindo à senda de sofrimento que os dois teriam pela frente, em contraposição ao pedido por grandeza feito por eles. Há ainda a se considerar as palavras de Jesus em João 21:22: “quero que ele permaneça até que eu venha”. Elas podem, em contraste com o tipo de morte que Pedro enfrentaria (v. 19), significar que João não enfrentaria o martírio.
Dionísio, bispo de Alexandria falecido em 265, também afirmou que o autor do Apocalipse não poderia ter sido o apóstolo João, escritor do quarto evangelho, em vista da diferença de linguagem entre uma obra e outra. Muitas palavras empregadas com frequência por João no evangelho são raras ou mesmo omitidas no Apocalipse. O uso de sinônimos igualmente reforça essa posição.
Ilha de Patmos, no mar Egeu: cenário onde João esteve exilado e recebeu visões. Imagem: Fotolia
No entanto, devemos lembrar que a natureza do assunto pode ter levado o escritor a empregar termos diferentes no Apocalipse diante da necessidade de repetir ou combinar as afirmações dos antigos profetas, considerando que os quadros do Antigo Testamento são predominantes no livro. As condições adversas sob as quais o Apocalipse foi produzido devem ser igualmente levadas em conta. O escritor era prisioneiro na colônia penal da ilha de Patmos, palco das visões que proveram o conteúdo do livro. Além disso, segundo a tradição, para a composição do evangelho, João teria contado com a assistência de um secretário.
MUDANÇA
Assim, a hipótese mais plausível aponta para o apóstolo João como o autor do Apocalipse. E quem foi ele? Um ardoroso seguidor de Jesus desde a juventude. Alguém cujo exemplo demonstra como a graça de Deus pode transformar a vida daquele que a ela se submete. Ele passou para a história do cristianismo como o “apóstolo do amor”.
A exemplo de outras personalidades da igreja primitiva, os dados biográficos de João aparecem esparsamente no Novo Testamento. Mateus o menciona apenas quatro vezes, Marcos dez e Lucas sete. O quarto evangelho, de autoria dele, menciona-o como o discípulo amado e como um dos filhos de Zebedeu.
João era o mais jovem dos discípulos de Jesus. Talvez não fosse muito estimado pelos demais, em vista de seu ambicioso desejo de ocupar o primeiro lugar no reino. De fato, a cobiça, o amor à posição e à supremacia e a avidez por promoção pessoal (Mt 10:35-37, 41) eram graves defeitos no caráter dele, e não eram os únicos. Jesus denominou João e seu irmão Tiago de “filhos do trovão”. Eram geniosos, impetuosos, cheios de ressentimento e propensos à vingança (Lc 9:49-54).
Por trás desses graves defeitos, porém, Jesus discerniu em João um ardente, sincero e amante coração. Embora muitas vezes repreendido pelo Mestre, ele se apegava mais firmemente a Jesus, até que sua alma se amalgamou à dele. Era o “discípulo que Jesus amava”, não porque Jesus não amasse os demais, mas porque João se deixou dominar por esse amor, a ponto de ter a vida totalmente transformada. Em seu coração a chama da lealdade e devoção ardente o tornou um dos mais destacados apóstolos na igreja cristã. Entre Jesus e ele desenvolveu-se uma profunda amizade, mais intensa que em relação aos demais discípulos.
João bebeu tanto da Fonte que alguns estudiosos e comentaristas de seu evangelho creem que sua linguagem e estilo correspondem à linguagem e ao estilo de Jesus. Embora isso não seja provável, é indiscutível que João nos apresenta um quadro profundamente original e distintamente autêntico de Jesus. Ele percebeu que Cristo se encarnou para ser a perfeita revelação de Deus, em vista do íntimo e pleno conhecimento que tinha do Pai.
Esse fato despertou no apóstolo o anseio de obter um conhecimento tão íntimo quanto possível do Salvador e de se tornar uma autêntica testemunha dele. João conseguiu alcançar esse ideal por meio de sua vida apostolar e de seus escritos. Então, no último livro da Bíblia, ele nos oferece uma revelação final e surpreendente de Jesus. De fato, ninguém foi capacitado a exaltar melhor a Cristo do que o apóstolo João.
A exemplo de Pedro e Tiago, cedo João se tornou íntimo discípulo de Jesus. Ele testemunhou a transfiguração (Mt 17:1) e, mais de perto, a agonia do Getsêmani (Mt 26:37). Esteve “aconchegado” a Jesus na ceia e reclinou a cabeça em seu peito (Jo 13:23-25). Do Getsêmani, seguiu o Mestre à sala do sumo sacerdote, de quem era conhecido, e então ao Calvário. Os episódios ali descritos (19:18-35) são tão reais que só uma testemunha ocular poderia assim narrá-los.
Na manhã da ressurreição, João correu na companhia de Pedro para ver o sepulcro vazio (20:3-8). Em companhia dos demais, viu o Salvador ressurreto, inclusive logo após voltarem à pescaria (21:7, 8). Nessa ocasião, depois do diálogo de Jesus com Pedro, concluído com a pergunta deste quanto ao destino de João, Jesus fez uma declaração que levou os discípulos a imaginar que João permaneceria vivo até a segunda vinda (v. 23).
João foi, entre os apóstolos, aquele que mais viveu, tendo chegado à idade avançada. Nessa época, por instigação dos judeus, foi aprisionado por Domiciano, que ordenou que ele fosse atirado a um caldeirão de azeite fervente (Atos dos Apóstolos, p. 570). Milagrosamente preservado por Deus, foi deportado pelo imperador para a ilha de Patmos, onde recebeu as visões do Apocalipse. Domiciano reinou entre 81 e 96. Segundo a tradição, Nerva, sucessor de Domiciano, libertou João, que voltou para Éfeso, onde terminou seu ministério e seus dias.
Como um dos lances finais de seu trabalho, João combateu as tendências gnósticas que pressionavam a igreja na Ásia Menor, sob a influência dos ensinos de um herege chamado Cerinto. De fato, uma clara resistência a esses ensinos pode ser sentida em seu evangelho e nas epístolas. O Apocalipse se opõe a eles indiretamente.
João é um vívido exemplo do que a graça de Deus pode fazer por alguém que, apesar de possuidor de graves defeitos de caráter, a ela se entrega sem reservas. “Ele submeteu seu temperamento ambicioso e vingativo ao modelador poder de Cristo, e o divino amor operou nele a transformação do caráter” (Atos dos Apóstolos, p. 557). Ele se tornou semelhante a Cristo. Poderia haver experiência mais preciosa do que essa?
JOSÉ CARLOS RAMOS, doutor em Ministério, foi durante muitos anos professor de Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)
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