Crítica Textual pode ser definida como a disciplina que procura restaurar o texto original de um documento, que foi alterado no processo de cópia e recópia.
Mesmo com os métodos modernos de impressão, onde revisões e leitura de provas reduzem ao mínimo os erros, freqüentemente estes aparecem.
Antes da invenção da imprensa, quando qualquer cópia de um documento tinha que ser feita, à mão, os erros eram muito mais comuns. Quando existe o autógrafo, torna-se fácil a correção, comparando-se a cópia ou cópias com o original.
É do conhecimento geral que os autógrafos bíblicos não mais existem e também as cópias diferem entre si em muitos pormenores. Pode-se afirmar, sem receio de contestação, que a tarefa de reconstituir o texto original, em toda a sua perfeição é humanamente impossível.
A Crítica Textual é uma disciplina bastante antiga, pois a História nos relata que em 274 a.C. Zenodato de Éfeso fez uma comparação de muitos manuscritos da Ilíada e da Odisséia com a finalidade de restaurar o texto original.
No fim do segundo século da nossa era, Teodato e seus companheiros empreenderam uma obra de recensão crítica do texto bíblico. Não muito distante de Teodato, um dos maiores intelectuais do seu tempo, Orígenes de Alexandria, começou um estudo crítico de todo o Antigo Testamento em hebraico e de diversas traduções gregas. Sua monumental obra – a Hexapla – foi durante muitos anos consultada por intelectuais da Patrística na Biblioteca de Cesaréia, até sua destruição no sétimo século pelas hordas islâmicas. O trabalho de crítica textual, levado a efeito por Orígenes, encontra-se abundantemente exemplificado em obras estrangeiras especializadas nesta disciplina.
Apenas duas rápidas referências ao seu trabalho neste campo:
1ª) Alguns poucos manuscritos como o Y teta e o C trazem a variante Jesus Barrabás para Mateus 27:16, enquanto quase a totalidade dos unciais e a maioria dos minúsculos trazem simplesmente Barrabás. Orígenes rejeitou a variante Jesus Barrabás em defesa da simples forma Barrabás, justificando que o nome Jesus não podia ser aplicado a alguém que praticasse o mal. Este argumento não me parece de muito peso.
2ª) Em João 1:28 aparece outra variante: Betânia e Betábara. A crítica textual crê que a forma primitiva era Betânia, mas algum copista achando difícil a harmonização geográfica alterou para Betábara. Orígenes defendeu para o lugar de batismo de João, Betábara, fundamentando-se na geografia e na etimologia. O manuscrito sinaítico e a King James trazem Betábara. Vincent em “Word Studies in the New Testament” diz que a correta variante é Betânia, não a Betânia de João 11:18, mas uma desconhecida vila, acrescentando que era comum dois lugares terem o mesmo nome, como as duas Betsaidas (Mar. 6:45; João 1:44); duas Cesaréias (Mat. 16:13; Atos 8:40), as duas Antioquias, uma na Síria e a outra na Pisídia.
São Jerônimo
Julgando de acordo com os padrões modernos, São Jerônimo (347-420), foi um crítico textual mais sagaz do que Orígenes, bem cônscio das variantes de erros que aparecem na transcrição de manuscritos. Ele se refere, por exemplo, à possibilidade da confusão de letras semelhantes, confusão de abreviações, acidentes envolvendo haplologia, metátese, assimilação, transposição e até deliberadas emendas dos copistas.
Em cartas a monges e no Prefácio da sua revisão dos Evangelhos há diversas referências que provam o seu profundo interesse na crítica textual. Por exemplo, em carta a dois monges que lhe pediram explicações de diversas passagens da Bíblia, ele discute diversas formas do texto de I Cor. 15:51, indicando que preferia a variante: “Todos dormiremos, mas nem todos seremos transformados”.
Olhando para o aparato crítico de um Novo Testamento grego inteiramo-nos de que assiste razão a São Jerônimo, porque o manuscrito sinaítico e alguns outros trazem: “Todos dormiremos, nem todos seremos transformados”. O problema principal com este verso parece ser este: a ordem diferente das palavras na frase altera o seu sentido.
Santo Agostinho (354-430)
Mostrou apreciável perspicácia crítica, no julgamento de problemas textuais. Um dos problemas estudados por ele se encontra em Mateus 27:9. Há aqui uma citação atribuída a Jeremias, quando na realidade é de Zacarias. Santo Agostinho sugere que deveria ser notado o seguinte: a atribuição da passagem a Jeremias não se encontra em todos os manuscritos dos Evangelhos, pois alguns trazem simplesmente: foi dito por intermédio do profeta. Os manuscritos que não contêm o nome do profeta, talvez fossem copiados de outros onde o nome de Jeremias se encontrava, mas os copistas o eliminaram, pensando que desta maneira solucionariam o problema. Um estudo mais aprofundado dos manuscritos gregos nos mostra que o nome de Jeremias aparece nos principais e mais antigos códices.
O trabalho da Critica dos textos bíblicos sempre prosseguiu com maior ou menor intensidade, porém, o ponto de partida da moderna Crítica Textual foi a edição de Westcott e Hort em 1881, a qual foi precedida de numerosos trabalhos, entre eles destacando-se os de Tischendorf.
Alta e Baixa Crítica
Antes de prosseguir seria útil saber que há duas espécies de crítica bíblica: Alta Crítica e Baixa Crítica.
A Alta Critica preocupa-se em estudar o autor do livro, tempo, lugar e circunstâncias em que ele foi escrito, sua validade histórica, etc. A expressão “Alta Crítica” tem dado motivo a objeções, por parecer indicar algo de superioridade, achando alguns que uma designação mais própria seria “Crítica Histórica”.
A Baixa Crítica estuda a linguagem (vocabulário, questões de gramática), a história da transmissão do texto, incluindo as tentativas para restaurar o texto do autógrafo original. Este estudo é chamado de Crítica Textual.
O material com que trabalham os críticos textuais da Bíblia inclui não somente as cópias dos manuscritos nas línguas originais, mas também antigas traduções e citações da Bíblia pelos Pais da Igreja. O conjunto destes materiais chama-se em Crítica Textual “testemunhas”.
Quando os manuscritos que contêm a Bíblia no idioma original diferem entre si em algum pormenor, o modo diferente que aparece em cada manuscrito chama-se “variante”. A finalidade primordial da Crítica Textual seria determinar que “variante” tem mais possibilidade de ser a original.
O trabalho da Crítica Textual requer muita perícia e técnica especializada que deve ser conquistada com muito esforço.
Para chegar a um bom fim, o crítico, entre outras coisas, deve saber:
a) Paleografia – A ciência da escrita antiga;
b) A técnica da recensão – comparação entre os manuscritos;
c) Ser perito em “Examinatio” – o processo de seleção das “variantes” nos manuscritos.
Como proceder a uma escolha judiciosa dentre as variantes?
Para fazer esta distinção, a crítica dispõe de dois critérios diferentes, embora necessariamente simultâneos e interdependentes: a Crítica Externa e a Crítica Interna. Estes Critérios são também denominados: Evidências Externa e Evidência Interna.
Evidência Externa
Envolve considerações como:
1º) A idade do manuscrito. Quanto mais Antigo é o documento, menos viciado ele deve estar pelos copistas. Pode também acontecer que manuscritos modernos sejam cópias de outros antiqüíssimos que desapareceram. Um manuscrito do VI século pode ter sido copiado dum manuscrito do IV século.
2º) A família a que o manuscrito pertence. Os manuscritos e versões foram classificados em grupos para facilitar a sua leitura e interpretação.
O mais importante na crítica textual externa é reconstituir, tanto quanto possível, a história dos diferentes estados do texto, agrupando os documentos semelhantes e procurando saber porque se teriam tornado diferentes. É um trabalho difícil, porque não foi possível ainda reunir todos os documentos necessários para se chegar a uma conclusão satisfatória.
3º) O número de manuscritos que apresentam a variante. Este número tem um valor relativo, desde que o princípio clássico “non numerantur sed ponderantur” não pode ser esquecido.
Evidência Interna
Esta procura precisa o valor dos textos através do seu conteúdo, envolvendo o que Hort designou: probabilidade transcricional.
A probabilidade intrínseca procura descobrir o que o autor mais provavelmente teria escrito, considerando:
1º) Seu estilo e vocabulário através do livro;
2º) O contexto;
3º) Harmonia com o uso do autor em outros lugares nos Evangelhos;
4º) Sempre considerar a base aramaica do ensino de Jesus;
5º) Não esquecer, advertem os entendidos, a precedência do Evangelho de Marcos.
A probabilidade transcricional, conhecendo os problemas enfrentados pelos copistas, estabeleceu as seguintes premissas:
1ª) A mais difícil variante deve ser preferida. Pela regra de Bengel “Proclivi scriptioni praestat ardua”, a tendência do copista era sempre simplificar e nunca acrescentar uma dificuldade;
2ª) Em geral uma variante mais curta deve ser preferida a uma mais longa;
3ª) Textos divergentes devem ser preferidos, porque a tendência dos copistas, era harmonizar passagens paralelas em desacordo;
4ª) Se o texto revelar aperfeiçoamento estilístico, não deve ser autêntico;
5ª) Ter sempre em mente a destacada influência da igreja primitiva sobre os copistas.
Além destas evidências externas e internas, o crítico textual não pode olvidar este princípio fundamental.
O principal critério para a avaliação de diferenças textuais é este: “escolher a variante que melhor explique a origem das outras”. Quando há duas variantes, igualmente sustentadas por provas externas, a mais provável é a que melhor se adapta ao sentido.
O conselho de Lake é bastante oportuno para aquele que se dedica à critica textual: “O crítico deve estar sempre pronto para revisar seu julgamento. Deve sempre suspeitar ainda mais de suas próprias conclusões.
A seguir, encontram-se três aplicações das regras aqui apresentadas; sendo as duas primeiras fornecidas por Joseph Angus em História, Doutrina e Interpretação da Bíblia, vol. 1, cap. IV, e a terceira, uma tentativa de aplicar o método e historiar a doxologia do Pai Nosso.
AS TRÊS TESTEMUNHAS CELESTIAIS EM 1 JOÃO 5:7
A passagem se encontra nas edições Clementinas da Vulgata, na Poliglota Complutensiana, e na terceira edição de Erasmo, por isso ela aparece também nos textos de Estêvão, Beza e Elzevir.
Contra sua legitimidade pode dizer-se:
a) Nenhum manuscrito grego de data anterior ao século XV a contém. Não vem em muitos manuscritos cursivos e no a A, B, etc.
b) Falta em todas as antigas versões, exceto na latina.
c) Os antigos Pais da Igreja nunca a citaram em qualquer dos seus argumentos a favor da doutrina da Trindade. Os versos 6, 8 e 9 são mais de uma vez citados, mas nunca o verso 7.
Em favor de sua legitimidade pode ser dito:
a) A passagem existe em alguns manuscritos gregos cursivos, no Códice Raviano de Berlim, no Códice Ottobiano do Vaticano, no Códice Regius de Nápoles e no Montfortianus de Dublin, devendo contudo observar-se que o primeiro é uma cópia do Complutensiano, o segundo é simplesmente uma tradução da Vulgata, e o terceiro conserva-se somente na margem. O quarto pertence ao século XV, ou é posterior.
b) Acha-se num manuscrito de extratos do Velho Latim (Speculum), pertencente ao sexto ou sétimo século.
c) É citada por Virgilius de Thapsus pelos fins do quinto século e também na Confissão de Fé que um grupo de cristãos, apresentou em 484 AD, e que pertence à história das perseguições dos vândalos na África.
d) Estas palavras são exigidas pela construção e conexão do texto.
A opinião geral dos intérpretes da Bíblia é assim expressa pelo Dr. Scrivener:
“Não hesitamos em declarar nossa convicção de que as palavras em questão não foram escritas pelo autor da Epístola de São João; mas que foram colocadas como piedosa e ortodoxa anotação na margem do verso oito, depois foram desta transportadas para o texto nos exemplares latinos da África, e do latim passaram para dois ou três códices gregos, penetrando depois no texto primitivo, lugar que não lhes pertence por legítimo direito.”
O PROBLEMA DE UMA EXPRESSÃO EM LUCAS 6:1
Depois da palavra sábado em Lucas 6:1 o “Textus Receptus”, e muitas traduções modernas trazem a expressão “o segundo-primeiro”. Sendo que esta expressão não aparece em outra parte, tem sido um problema exegético de difícil solução. Em virtude da palavra não constar nos melhores manuscritos, poder-se-ia afirmar que ela não se encontra no original, não fosse a suspeita de que algum copista a tivesse omitido por causa da sua obscuridade.
O principio da probabilidade transcricional torna necessário explicar a sua inserção, se não é genuína. Meyer engenhosamente sugere que a palavra é simplesmente a fusão de duas notas marginais, opinião esta que foi adotada por W. H. e outros. Como no versículo 6, está a expressão “noutro” (heteros) sábado, algum escriba pôs à margem no verso primeiro a nota “num primeiro” (proto). Mas a recordação de diversos incidentes, que se tinham dado em sábados anteriores, levou outro copista a fazer uma correção “num segundo” (deuteros) sobre a (deuteroproto) que algum copista posterior intercalou no texto para confusão dos comentadores. Ou seja assim, ou não, o fato esclarece uma deturpação do texto original.
A DOXOLOGIA DO PAI NOSSO
Se Jesus tivesse concluído Sua oração com a doxologia não haveria necessidade deste estudo, mas a realidade parece ser bem diferente.
Como é do conhecimento de todos os estudiosos dos problemas do texto bíblico, a grande maioria dos manuscritos e das antigas versões não trazem esta parte do Pai Nosso. Portanto, cabe à crítica textual explicar como ela apareceu, ou provar a sua autenticidade.
Sabemos que não é fácil desarraigar um hábito de muitos anos, mas porque a verdade precisa ser conhecida, o assunto será tratado realisticamente, embora com a dignidade e respeito que as palavras merecem, em face do uso que delas fazemos. A doxologia nos é tão familiar e agradável, embelezando tanto o final desta oração, que apenas discutir a sua omissão poderá parecer sacrilégio para alguns.
Que diz a Crítica Textual sobre este problema?
Os principais manuscritos das famílias Ocidental e Alexandrina a omitem, embora apareça nas famílias Cesareense e Bizantina por se caracterizarem pelo polimento e aperfeiçoamento do estilo, não apresentam o mesmo peso em evidências textuais. Sendo a doxologia um polimento que aformoseia o Pai Nosso, não merece muito crédito o seu aparecimento nas citadas famílias.
Dos 250 manuscritos unciais apenas seis registram a doxologia, sendo eles: o Teta ou Coridete, o W, que se encontra em Washington, o K e o L de Paris, o Delta e o PI. Dos 2.646 manuscritos minúsculos ela aparece em mais ou menos uns 20. Alguns manuscritos trazem a doxologia em sua forma reduzida e ainda outros com redação alterada.
A doxologia não aparece nos Pais da Igreja (excetuando-se Crisóstomo e seus discípulos).
Todos os grandes vultos que se dedicaram ao estudo da Crítica Textual concluem que esta parte não pertence ao escrito original de Mateus.
O Comentário Bíblico Adventista diz:
“Importante evidência textual pode ser citada para a omissão desta doxologia. . . . Contudo, o sentimento que ela expressa é escriturístico, intimamente relacionado com I Crônicas 29:11-13.”
Diante destas evidências a conclusão apenas deve ser esta: Sendo que o texto grego termina com a palavra poneros = mal, a doxologia deve ser suprimida da Bíblia, como fazem as Bíblias Católicas.
Como a doxologia achou seu caminho para o texto bíblico?
A doxologia surgiu quando algum copista achou que o Pai Nosso precisava de um acréscimo litúrgico ou pela observação de que as outras orações terminavam com uma doxologia.
Este término produz em nós a impressão de um mais completo ato de adoração.
Deixando de lado o aspecto científico e dando apenas vazão à afetividade poderíamos concluir como fez o prof. Aécio Cairus do Colégio Adventista do Prata:
“De qualquer modo, não há porque interromper o costume de usar estas formosas palavras quando oramos. O comentário ou utilização que delas fazem a Sra. White, só garantem a sanidade e veracidade declarativas – não a origem ou canonicidade, a menos que queiramos canonizar também os escritos pagãos que Paulo cita para exemplo. Mas nos dão razão de sobra para utilizar a formosa doxologia sem a qual para os que estamos habituados a ouvi-la, o Pai Nosso perderia algo de sua sonoridade.” (O Ministério Adventista, janeiro e fevereiro de 1975, p. 16).
Texto de Pedro Apolinário, História do Texto Bíblico, Capítulo 10.
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