quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Guilherme Miller: o Homem Atrás da História de 1844


22 de outubro de 1994. Milhares de fiéis de todos os Estados Unidos remiram-se na pequena casa de fazenda em Low Hampton, Estado de New York. Vieram não só para adorar, mas para meditar sobre um fenómeno religioso ocorrido há 150 anos. Vieram para comemorar a ocasião em que os "fiéis" tinham vendido seus sítios, endireitado seus erros e se reunido no sitio de Low Hampton para aguardar a Segunda Vinda. Vieram para renovar sua dedicação a uma visão, porque "a visão ainda para cumprir-se no tempo determinado...se tardar, espera-o, porque certamente virá" (Habacuque 2:3).

Vieram para relembrar Guilherme Miller, o homem atrás da história de 1844.

Glilherme Miller nasceu em 15 de fevereiro de 1782, em Pittsfield, Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos. Seu pai tinha lutado na Guerra Revolucionária Americana. Embora não fizesse profissão pública de religião, abriu sua casa aos vizinhos para culto e pregação. Sua mãe, Paulina Phelps, filha de ministro batista, trouxe uma tradição religiosa para o lar.

A vida do jovem Guilherme reflete o período inicial da história norte-americana. Era o mais velho de 16 crianças e "sua era a história clássica de pobreza, zelo fora do comum de aprender a ler, a necessidade de diligência no cultivo da terra para sobreviver".' Sua herança era de orgulho por patriotismo e religião demonstrados, e pelo ideal norte-americano de progresso. Sua época, como sua vida, foi "de incertezas opressivas e mudanças chocantes".2

Vida de um autodidata

Quando Guilherme mal tinha quatro anos, seus pais mudaram-se para um sítio de 100 alqueires, "um sertão quase sem habitantes",3 em Low Hampton. A hipoteca anual era paga com 20 alqueires de trigo. Apenas umas seis casas existiam no município. Neste ambiente, onde animais selváticos vagavam, árvores eram derrubadas para construir cabanas, o terreno era limpado e os Millers viviam como sitiantes. Era uma vida rústica, e mesmo o jovem Guilherme tinha de ajudar na roça. A educação era limitada a três meses no inverno quando a colheita tinha sido feita. Miller frequentou a escola dos 9 aos 14 anos. Durante os longos meses de inverno, sua mãe ensinou-o a ler. Tornou-se um leitor ávido, sedento de conhecimento. Mas os únicos materiais a sua disposição eram a Bíblia, o saltério e o livro de oração. Logo saiu da escola mas continuou a aprender sozinho.

Velas eram artigo precioso, e assim Guilherme descobriu que nós de pinho faziam boa luz para a leitura. Certa noite, quando lia já tarde, seu pai acordou, viu a luz bruxuleante, e pensou que a casa se incendiara. Mas quando reconheceu que Guilherme estava lendo, mandou-o para a cama imediatamente. O ardente leitor reconheceu a vizinhança como boa fonte de material de leitura. Algumas pessoas lhe emprestaram livros, outros lhe deram livros como presente."

Ainda adolescente. Guilherme começou a escrever um diário. Um registro que data de 10 de julho de 1791, tem por título, "A História de Minha Vida," e aí se lê: "Fui cedo educado a orar ao Senhor." Sua juventude era típica da maior parte dos rapazes de então. Não obstante. Guilherme almejava algo melhor. Procurou até o auxílio de um médico local, generoso, para poder continuar os estudos. Seu sonho não se realizou, mas ele fez seu melhor por conta própria. Aprendeu a usar bem as palavras e tornou-se o "escrivão geral" entre os jovens. Se alguém queria compor uma carta ou uma poesia, era a Guilherme que pediam.5

A família mudou-se mais uma vez para Poultney, no Estado de Vermont. Ali ele ficou conhecendo Lucy Smith e desposou-a em 1803. Aderiu à fraternidade maçónica e nela subiu até o mais alto grau. Seis anos depois de seu casamento ele era o vice cherife e também servia a comunidade como juiz de paz. Apesar de continuar com o cultivo de terra, não era essa sua ocupação principal. Continuava a ler e escrever. Na biblioteca pública ele lia obras de autores deístas, história e filosofia. Escrevia cartas, notas, porções do diário e poemas patrióticos, um dos quais foi usado pela comunidade para sua comemoração da independência. Parece que este pendor patriótico e os exemplos de seu pai e de seu avô em guerras prévias foram responsáveis pela decisão que Miller tomou de abandonar um emprego seguro em sua vizinhança e apresentar-se como voluntário ao serviço militar em 1810. Lutou na guerra de 1812 contra os ingleses, e na batalha de Plattsburgh viu os norte-americanos esmagarem um número muito superior de ingleses — um fato que ocasionou uma vira-volta na vida de Miller.

Um deísta insatisfeito

Embora Guilherme tivesse abraçado o deísmo, ele não estava inteiramente satisfeito. Perturbava-o a noção deística de que a natureza humana era basicamente boa; sua leitura e observação mostravam justamente o contrário.6 A batalha de Plattsburgh finalmente destruiu sua crença no deísmo. Ele reconta o incidente: "Muitos acontecimentos serviram para enfraquecer minha confiança nos princípios deísücos...Fui particularmente impressionado com o seguinte...quando estive na batalha de Plattsburgh, com 1.500 regulares e 4.000 voluntários, nós derrotamos os ingleses que contavam com 15 mil homens.... Um resultado tão surpreendente contra toda expectativa, pareceu-me a obra de um poder superior ao do homem."7

O resultado da batalha levou-o a duvidar de outra noção deística, a de que Deus não interfere nos assuntos humanos. Além disto, durante a guerra de 1812, Miller perdeu uma irmã e seu pai em rápida sucessão, confrontando-o com a morte e sua própria mortalidade. Estes acontecimentos impeliram Miller a voltar à herança religiosa de sua juventude que ele rejeitara. Miller, como muitos em seus dias, estava interessado em reformas sociais. Envolveu-se com temperança e outras reformas. William Garrison (1805-1879), jornalista norte-americano famoso por sua denúncia da escravatura, descreveu Miller como um amigo sincero da causa da temperança, da abolição, reforma moral e paz. Era a favor de tratar bem todos os seres humanos, embora não haja evidência de que ele estivesse diretamente envolvido no movimento anti-escravagista.

Mesmo no exército Miller continuou a fazer todas as coisas de que gostava. Escrevia à esposa frequentemente e ficava aflito se não recebesse cartas dela regularmente. Era bem respeitado e isento dos vícios tão comuns na vida militar. Quando saiu do exército em 1815, teve de tratar de negócios da família. Seu pai tinha morrido, deixando uma hipoteca sobre a propriedade em Low Hampton. Liquidou-a e permitiu que sua mãe continuasse a morar na casa. Depois comprou um sítio à distância de um quilómetro e mudou-se com a família de Vermont para Low Hampton. Construiu uma casa no estilo típico da época, "branca com venezianas verdes, e vermelha nos fundos".

De novo Miller tornou-se ativo na comunidade. Perto de sua casa havia um belo bosque que foi escolhido para a festa da independência de 1816. Sua generosidade também se mostrou em abrir sua casa ao ministro, seu tio, Eliseu Miller, da igreja vizinha. Como seus pais, sua casa estava aberta a pregadores itinerantes de várias denominações. Ali encontravam alimento, e Miller os arreliava quanto a sua fé, para o deleite de seus amigos e o horror de sua família.8

Embora não professasse o cristianismo, Miller frequentava a igreja quando havia pregador. Quando o pastor estava ausente e o diácono lia o sermão, Miller sentia que "não era edificado pela maneira em que os diáconos liam", e ausentava-se. Sentia também que se ele pudesse fazer a leitura, eles aproveitariam mais. Sua mãe piedosa notou sua ausência e, descobrindo a razão, logo fez arranjos para que ele fizesse a leitura quando o ministro estivesse ausente. Estas leituras devem ter influenciado imperceptivelmente o pensamento de Miller.

Uma mudança crucial

Dois acontecimentos em 1816 o levaram a um ponto crucial. No dia 11 de setembro, Miller e seus amigos estavam animados com um baile a ser realizado como evento principal na comemoração da batalha de Plattsburgh. Como parte da comemoração, um tal Dr. B. pregou algumas noites antes do baile. O efeito do sermão foi evidente, segundo Bliss: "Ao voltar, a Sra. (Miller) que tinha ficado em casa observou uma maravilhosa mudança em seu comportamento. Sua hilaridade foi-se, e todos estavam pensativos, sem disposição para conversar, em resposta a suas perguntas quanto à reunião e ao baile.... Ficaram completamente incapacitados para qualquer participação nos arranjos festivos.... Naquela vizinhança reuniões de oração e louvor substituíram a brincadeira e o baile".9

No domingo seguinte Guilherme Miller foi de novo chamado para ler o sermão que os diáconos tinham escolhido. Miller foi tomado de emoção logo depois de começar a ler o sermão sobre "a importância dos deveres dos pais", e teve que parar de ler. Neste ponto parece que sua luta com os conceitos deístas terminou, como ele disse mais tarde:

"Subitamente o caráter de um Salvador foi vividamente impresso sobre minha mente. Pareceu-me que bem poderia haver um Ser tão bom e compassivo a ponto de Ele mesmo fazer expiação por nossas transgressões e assim nos salvar de sofrer a penalidade do pecado.... Mas a questão surgiu: Como pode ser provado que um tal Ser existe?"10

Este foi o começo da conversão de Guilherme Miller. Guilherme Miller, o deísta, o zombador, tomou-se um cristão. Imediatamente começou o culto em família e abriu sua casa para a reunião de oração. Do mesmo modo como tinha sido um devotado e fiel soldado de sua pátria, ele agora tornou-se um soldado para o Salvador. Seus amigos consideravam sua conversão uma grande perda, mas Miller resolveu conduzir-se como um cristão exemplar. Como crítico do cristianismo ele conhecia todos os argumentos; agora passou a usar todo seu poder argumentativo para responder às perguntas que dantes ele mesmo fazia."

Miller começou sua busca com a Bíblia. Abandonou todas suas pressuposições e decidiu deixar que as Escrituras falassem por si mesmas. Através deste estudo profundo e extenso, ele desenvolveu as seguintes ideias: A Bíblia é sua própria intérprete; algumas partes da Bíblia, tais como as profecias, são figurativas; os livros de Daniel e Apocalipse predizem a volta literal de Cristo, que devia ocorrer logo, dentro de 25 anos.12

Enquanto fazia sua pesquisa, Miller continuou a cuidar do sítio, a servir como juiz de paz e a frequentar fielmente a igreja. Além disto, tornou-se o pai de oito crianças — seis filhos e duas filhas. Ainda assim Miller achava tempo para estudar a Bíblia, impelido por uma sede da verdade. Depois de dois anos de estudo intensivo, ele falou a seus amigos e vizinhos sobre a breve volta de Cristo, mas encontrou pouca receptividade. Pouco depois uma onda de reavivamento atingiu Low Hampton, e Miller sentiu-se culpado de não partilhar o que ele considerava a mais importante verdade atual. Embora sentisse que Deus o estivesse chamando para pregar, Miller resistiu.

Uma barganha com Deus

Finalmente ele fez uma promessa ao Senhor. Em agosto de 1831 ele decidiu que se ele fosse convidado a pregar, ele interpretaria isto como um sinal de que Deus queria que ele disseminasse a verdade que achara. Meia hora depois ele recebeu um convite para falar numa cidade vizinha.13 Daí em diante ele foi de cidade em cidade usando o estilo reavivalista de pregação. Sua mensagem centralizava-se em aceitação de Cristo e de Seu breve retorno. Sua abordagem lógica baseada na Bíblia, sua sinceridade e mensagem poderosa ganharam-lhe muitos seguidores.

Mas a maior parte dos ministros da época não seguiram Miller, e com efeito começaram a se opor a sua pregação. Não obstante, Miller imprimiu nova vida à causa evangélica do dia.14 O método principal que Miller e seus associados usavam para comunicar sua mensagem não era diferente de outro reavivamento evangélico qualquer. Miller, porém, foi contra a opinião popular de sua época ao pregar que Jesus voltaria antes do começo do milénio.15 Poderia ter permanecido um pregador obscuro não fosse pela determinação de Josué V. Himes, ministro e publicador, de trazer a mensagem de Miller a Boston e outras cidades. Então a mensagem e o mensageiro se tornaram mais visíveis à medida que jornais locais publicavam histórias de suas reuniões. Além disto, Himes providenciava cartazes e outras formas de publicidade. Jornais, tratados e panfletos eram também impressos e distribuídos.

Por volta de 1834, os convites para pregar eram tantos que Miller tornou-se um pregador de tempo integral. Um ano antes a igreja batista local tinha-lhe dado uma licença para pregar, mas Miller não favorecia uma denominação sobre outra. Sua preocupação era levar pessoas a aceitar Cristo e preparar-se para Sua breve volta. Pregar a tempo integral era uma luta, pois não recebia salário regular e às vezes nem o custo de viagens. Ele tinha duas fontes de renda. Uma era seu sítio, agora confiado a seus filhos, e recebia uma soma para fazer frente às despesas. A outra fonte era suas economias. Somente quando seu estipêndio não era suficiente para as necessidades consentia que as igrejas partilhassem suas despesas.16

O movimento em marcha

Ao trabalhar com Himes e outros pregadores que aceitaram sua ideia de um Cristo prestes a voltar, Miller começou a imprimir sua mensagem. Tratados e folhetos começaram a ser distribuídos em número crescente. O movimento de Miller também adotou o tipo metodista de reuniões campais, a primeira das quais teve lugar em Boston, em maio de 1842. Como resultado, o movimento continuou a se expandir, atraindo milhares.

A mensagem original de Miller incluía um elemento de tempo, mas ele não se preocupava em marcar uma data específica. Cria que Jesus voltaria, segundo seus cálculos, por volta de 1843. Finalmente concordou com a data de 22 de outubro de 1844. Ele, com milhares de seguidores, ficou amargadamente desapontado quando Cristo não voltou como esperava. No dia seguinte escreveu:

"Passou. E no dia seguinte parecia que todos os demónios do abismo foram soltos. As mesmas pessoas e muitas mais que estavam clamando por misericórdia dois dias antes, misturavam-se agora com a ralé, caçoando e ameaçando com blasfémias."17

Mas Miller nunca hesitou em sua crença na breve volta de Cristo. Em 10 de novembro de 1844, ele escreveu para Himes: "Fixei minha mente sobre outro tempo, e aqui pretendo permanecer até que Deus me dê mais luz — E isto é Hoje, Hoje e Hoje até que Ele venha."18 Miller continuou a pregar e a encorajar outros com a esperança cristã, embora tivesse de lutar com mais adversários e críticos.

Em janeiro de 1848 Miller perdeu a vista, mas isto não o impediu de aguardar a volta de Cristo. Naquele mesmo ano ele fez construir uma pequena capela em seu sítio, perto de sua casa, onde os fiéis crentes adventistas pudessem adorar. Inscritas na capela estão estas palavras da Bíblia: "A visão está ainda para cumprir-se no tempo determinado...se tardar, espera-o porque certamente virá." 19 Esta foi sua posição sobre a segunda vinda de Cristo até sua morte aos 67 anos, em 20 de dezembro de 1849.

As ideias de Miller sobre as profecias bíblicas e a iminente volta de Jesus podem ser melhor compreendidas no contexto de um amplo movimento religioso que surgiu ao mesmo tempo na Europa e nas Américas durante a primeira parte do século 19.20 Com o encerramento do reavivamento milerita, muitas destas ideias foram absorvidas na Igreja Adventista do Sétimo Dia, que continua a pregar a iminente volta de Jesus, mas sem fixar uma data específica.21

Joan Francis (Ph.D., Camegie-Mellon University), nascida em Barbados, ensina História no Atlantic Union College, em South Lancaster, Massachusetts, E.U.A.

Notas e Referências

  1. Ronald L. Numbers e Jonathan M. Butler, eds., The Disappointment: Millerism and Millenarianism in the Nineteenth Century (Indianapolis: Indiana University Press, 1987), pág. 17.

  2. Marvin Meyers, como citado em Numbers, pág. 17.

  3. Sylvester Bliss, Memoirs of William Miller (Boston: Joshua V. Himes, 1853), pág. 7.

  4. Ibidem.

  5. Ibidem.

  6. Ibidem, págs. 32-33. Ver também George R. Knight, Millennial Fever and the End of the World (Boise, Idaho: Pacific Press Pub. Assa., 1993), págs. 28-31.

  7. Bliss, págs. 52-53.

  8. Idem, pág. 64.

  9. Idem, pág. 66.

10. Idem, págs. 66-67.

11. Idem, págs. 67-68.

12. Ver Bliss, capítulos 6-8, para detalhes da conversão de Miller e seu método de estudar a Bíblia.

13. Bliss, págs. 97-99.

14. Ruth Alden Doan, "Millerism and Evangelical Culture", em Numbers, pág. 121.

15. Knight, págs. 54-55.

16. Idem, págs. 57-59.

17. Carta escrita à mão, 13 de dezembro de 1844, como citada em Paul A. Gordon, Herald of the Midnight Cry: William Miller and the 1844 Movement (Boise, Idaho: Pacific Press Pub. Assn., 1990), pág. 103.

18. Gordon, pág. 107.

19. Habacuque 2:3.

20. Ver Leroy Edwin Froom, The Prophetic Faith of Our Fathers, 4 vols. (Washington, D.C.: Review and Herald, 1950-1954). Ver também "Manuel Lacunza: a Conexão Adventista," Diálogo 6:1 (1994), págs. 12-15, e "Francisco Ramos Mexia: o Primeiro Adventista Moderno?" Diálogo 6:2 (1994), págs. 13-15.

21. As afirmações de Cristo a respeito são claras; ver, por exemplo, Mateus 24:36, 42, 50; 25:13; Marcos 13:32; Atos 1:6-7. Segundo Gordon (Herald.. .págs. 119-120), um dos oito filhos de Miller, Langdon, uniu-se aos adventistas sabatistas.


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