A experiência de Caim, Abel e suas respectivas ofertas sempre surge no debate sobre música. Analisando-se alguns artigos e livros sobre o tema, percebe-se claramente que o fato de Deus ter rejeitado a oferta de Caim é rapidamente associado a elementos do culto cristão considerados polêmicos.
O argumento é: "Não podemos adorar a Deus como queremos, mas como Deus quer. Veja o caso de Caim!" A partir daí, o usuário do "argumento Caim" o aplica da seguinte forma: "O modo como EU adoro é 'oferta de Abel', e o modo como VOCÊ adora é 'oferta de Caim'".
Parece-me que o “argumento Caim” deteriorou-se como o “argumento do escândalo”. É uma espécie de carta-curinga, sacada da manga e encaixada sem critério algum em qualquer discussão sobre música e adoração.
Utiliza-se o “argumento Caim” para atacar desde o uso de spots de iluminação em cantatas de coral até para embasar “biblicamente” a proibição de se retirar o púlpito da plataforma.
Ironicamente, é comum ver na mesma pessoa que usa o “argumento Caim” a atitude extrema e violenta de Caim: dedo em riste, críticas, ataques e perseguições aos irmãos.
Refletindo sobre o tema, conclui-se que o “argumento Caim” só é aplicável a situações onde a expressa vontade de Deus estiver sendo desconsiderada na adoração. Uma mudança na ordem da liturgia, por exemplo, não é desobediência a Deus, já que Ele não estabeleceu uma sequência litúrgica inflexível no culto cristão. No entanto, na mente de alguns, colocar o ofertório antes do hino inicial já seria "querer fazer do seu jeito, e não do jeito de Deus. Lembre-se de Caim!!!". E assim, o 'argumento Caim' vai se sacralizando, sob uma falsa aura de "argumento bíblico".
No entanto, utilizado dessa forma, não é nem bíblico e nem lógico. Vejamos:
“Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício mais excelente que o de Caim.” (Hb 11:4)
Abel ofereceu seu sacrifício pela fé, de acordo com a Palavra de Deus.
“De sorte que, a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.” (Rm 10:17)
Se adorarmos a Deus pela fé, nós o faremos de acordo com a Sua Palavra.
Se nossa adoração não é pela fé, em obediência à Palavra de Deus, ela se torna pecaminosa, pois "tudo o que não provém da fé é pecado" (Rm 14:23).
O caso de Caim envolve algo simples mas perigoso: substituir uma ordem de Deus por outra coisa, mesmo por coisas aparentemente boas e aceitáveis.
Os hipócritas da época de Jesus praticavam muitas coisas boas e aceitáveis, frutos de boas intenções. No entanto, isso se tornou pecado quando os mandamentos divinos começaram a ser substituídos por tais coisas:
“Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês.” Mt 15:6
Sobre isso, Jesus disse:
“Hipócritas! Bem profetizou Isaías acerca de vocês, dizendo: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens’". Mt 15:8-9
O caso de Caim não é apenas uma ingênua questão de gosto pessoal ("ele preferia frutos a cordeiros..."). É uma questão de desrespeito e desobediência deliberada. Longe de ser um sincero adorador ignorante, Caim era um rebelde que conhecia a vontade de Deus, mas decidiu desobedecer de propósito.
“Não sejamos como Caim, que pertencia ao Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque suas obras eram más e as de seu irmão eram justas.” 1 Jo 3:12
Deus é muito específico acerca do que quer de nós na adoração. No entanto, quando o "argumento Caim “ é usado na discussão sobre música, implicitamente colocamos várias normas e práticas que Deus NÃO especificou na adoração. Assim, cometemos o mesmo erro das pessoas a quem queremos corrigir: colocar a vontade humana à frente da vontade de Deus.
A seguir, a análise de algumas afirmações sobre o tema, encontradas em livros e artigos, sob a luz da Bíblia e dos escritos de Ellen White:
1) “O pecado de Caim foi uma ‘modernização’, uma ‘culturalização’”
Não. O pecado de Caim foi desobedecer.
Caim levou a Deus uma simples oferta de gratidão, e não uma oferta pelo pecado [1].
Tecnicamente, trazer uma oferta “do fruto da terra” é algo encontrado na Bíblia, uma oferta legitimamente bíblica (Lv 2:1, 14; Nm 18:12, 13; Dt 26: 2, 4, 10). No entanto, não era esse tipo de oferta que o Senhor requeria naquele episódio.
“Sua oferta assemelhava-se à de Caim. Traziam ao Senhor os frutos da terra, os quais eram, em si mesmos, aceitáveis aos olhos de Deus. Muito bom era, na verdade, o fruto; mas, a virtude da oferta - o sangue do Cordeiro morto, representando o sangue de Cristo - isso faltava.”[2]
Não houve nenhum tipo de modernização ou culturalização. Houve sim uma desobediência a uma ordem expressa do Senhor. Ele ofereceu uma oferta tecnicamente correta, mas em substituição à oferta requerida por Deus.
“Caim obedeceu ao construir o altar, obedeceu ao trazer um ‘sacrifício’; prestou, porém apenas uma obediência parcial. A parte essencial, o reconhecimento da necessidade de um Redentor, ficou excluída”.[3]
A atitude de Caim indica que ele se achava justo. Aos seus próprios olhos, não havia necessidade de confissão de pecados e nem de misericórdia. Utilizar o “argumento Caim” contra inovações é ignorar a existência de ofertas do fruto da terra.
2) “A adoração de Caim foi ‘pomposa’, ‘chamativa’ e ‘de fazer barulho’”.
Não. A oferta de Caim foi uma “simples oferta de gratidão”[4].
Caim não estava preocupado nem mesmo em trazer “o melhor dos frutos”[5].
Não há nada de pomposo, chamativo ou barulhento na oferta de Caim. Ele trouxe sua oferta com “murmuração e infidelidade”[6].
3) “Caim ofereceu o seu melhor”
Não. “Caim não estava preocupado em trazer nem mesmo o melhor dos frutos”[7].
Abel sim trouxe o melhor, cheio de fé[8].
4) “Caim adorou com sinceridade”
Não. A oferta de Caim foi feita com murmuração, infidelidade e dúvida[9]. Caim não era um adorador do Deus vivo, ele era do Maligno (1 Jo 3:12).
Caim sabia a vontade de Deus, mas a recusou deliberadamente numa atitude de desrespeito e rebeldia[10].
5) “Caim não tinha cordeiros para oferecer”
Não era difícil para Caim conseguir um cordeiro. O próprio Abel o aconselhou a trazer um cordeiro. “(Caim) não estava disposto a seguir estritamente o plano de obediência e procurar um cordeiro e oferecê-lo com os frutos da terra. Meramente tomou do fruto da terra e desrespeitou as exigências de Deus.”[11].
Note a interessante possibilidade de oferecer o cordeiro com os frutos da terra.
Conclusão
Teologicamente, a oferta de Caim representa a tentativa de salvação pelas obras, sem cordeiro, sem sangue, sem os méritos de Jesus:
“O esforço que o homem faz em suas próprias forças para obter a salvação é representado pela oferta de Caim”[12].
Caim e Abel representam duas classes distintas: “fiéis X infiéis”, “salvos pela graça X legalistas”, “obedientes X rebeldes”. Eles não representam “os que cantam sem melismas X ‘melismeiros’”, nem “eruditos X populares”, muito menos “louvor com percussão X sem percussão”.
Assim, tanto o culto desordeiro e indecente quanto o silencioso culto gregoriano idólatra podem ser “oferta de Caim”. Independentemente do estilo e da música, ambos desobedecem a ordens explícitas de Deus.
O barulhento louvor da Carne Santa acompanhado de “gritos com tambores, musica e dança” é “oferta de Caim” por seus graves erros doutrinários e por sua irreverência. O culto ao som do órgão e do coral também pode ser “oferta de Caim” por sua ostentação e idolatria:
“O culto da Igreja Romana é um cerimonial assaz impressionante. O brilho de sua ostentação e a solenidade dos ritos fascinam os sentidos do povo, fazendo silenciar a voz da razão e da consciência. Os olhos ficam encantados. Igrejas magnificentes, imponentes procissões, altares de ouro, relicários com pedras preciosas, quadros finos e artísticas esculturas apelam para o amor do belo. O ouvido também é cativado. A música é excelente. As belas e graves notas do órgão, misturando-se à melodia de muitas vozes a ressoarem pelas elevadas abóbadas e naves ornamentadas de colunas, das grandiosas catedrais, não podem deixar de impressionar a mente com profundo respeito e reverência.
Este esplendor, pompa e cerimônias exteriores, que apenas zombam dos anelos da alma ferida pelo pecado, são evidência da corrupção interna.”[13].
Caim substituiu o que Deus pediu. Ele decidiu desobedecer. Esse argumento não pode ser utilizado contra inovações e estilos que não comprometam ordens claras e específicas de Deus. Podemos discutir racionalmente o que é melhor e mais conveniente ao culto sem apelar para o "argumento Caim" a todo instante.
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[1] Parábolas de Jesus, 152.
[2] Evangelismo, 188.
[3] Patriarcas e Profetas, 72.
[4] Parábolas de Jesus, 152.
[5] História da Redenção, 52.
[6] História da Redenção, 52.
[7] História da Redenção, 52.
[8] A verdade sobre os anjos, 64.
[9] História da Redenção, 53.
[10] História da Redenção, 52; Patriarcas e Profetas, 72; 1Mens. Escolhidas, 233.
[11] A Verdade sobre os anjos, 64.
[12] Fé e Obras, 94.
[13] O Grande Conflito, 566 e 567.
Fonte: Adoração Adventista
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