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Décadas se passaram desde o lançamento de O Ritual do Santuário, por M. L. Andreasen. Mesmo assim, a discussão sobre perfeição cristã não deixa de gerar debates e atrair a atenção dos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Enquanto muitos consideram as declarações de Andreasen sobre a perfeição da última geração como perfeccionistas, outros o aclamam como o destemido teólogo da verdade.
Embora o tema da perfeição cristã tenha sido tratado em uma quantidade significativa de publicações, proporcionado amadurecimento teológico sobre o assunto, sua contrapartida – o perfeccionismo – é geralmente tratado de maneira supérflua e passageira. Fato é que, para muitos, perfeccionismo é um assunto ainda confuso. Percebe-se isso quando, em certos casos, alguém na igreja é rotulado de perfeccionista porque se tornou vegetariano, evita alimentos contendo açúcar, deixa de assistir à televisão, ou prefere um estilo de adoração ou educação domiciliar mais ortodoxo. Aparentemente, muitas congregações não têm uma definição clara sobre o assunto, levando certos membros a tratar como algo estranho aquilo que é promovido e ensinado pela igreja.
Sendo assim, o intuito deste artigo é discutir o tema de maneira a apresentar uma definição objetiva de perfeccionismo, fundamentando-se na compreensão da teologia cristã e dos escritos de Ellen White.
Definição
Embora no sentido popular perfeccionismo seja interpretado como a atitude irritante daqueles que se esforçam ao extremo para deixar tudo perfeito (limpeza, notas na escola, apresentação musical, entre outras questões), no sentido religioso, o termo denota a tentativa de viver sem pecado: a perfeição moral.
Entre teólogos e estudiosos do assunto, há um consenso de que perfeccionismo é a crença na “perfeição absoluta” – a impecabilidade, ou a possibilidade de se alcançar a condição de Adão antes da queda.[i]
Conforme Millard Erickson, perfeccionismo é “a crença de que é possível alcançar um patamar no qual o fiel não peque mais”, seja hoje ou em algum momento no futuro (The Concise Dictionary of Christian Theology, 2001, p. 152).
George Knight, ao discutir sobre o assunto em sua obra Pecado e Salvação (2016, p. 139-140), aponta para certas distorções do conceito de perfeição cristã tidas como perfeccionistas. Uma delas é a que ocorre na forma pela qual o cristão se relaciona com a lei de Deus. Conforme o autor, se o pecado for atomizado, isto é, definido unicamente como uma ação que transgrida a Lei de Deus, o cristão passará a preocupar-se unicamente com sua conformidade externa (ibid, p. 15). Mediante suficiente esforço, todos os pecados poderão ser eliminados. Como consequência, cada ação humana passará a ser regulada a partir de regras cada vez mais estritas e ramificadas, envolvendo cada aspecto da existência. Isso pode levar a casos extremos de restrição alimentar, celibato, flagelo ou até mesmo castração. No entanto, uma vez que esse patamar de impecabilidade é alcançado, todos os seus atos passam a ser considerados puros, santificados e justos (ibid, p. 156). Segundo LaRondelle, essa justiça, entretanto, não é aquela imputada por Cristo, mas uma que é praticada pela própria pessoa, mesmo que nem sempre esteja em conformidade com a Palavra de Deus (Perfection and Perfectionism: A Dogmatic-Ethical Study of Biblical Perfection and Phenomenal, 1971, p. 326).
Um exemplo dessa situação ocorreu logo no início do movimento adventista, sendo um dos primeiros casos em que Ellen White se deparou com o perfeccionismo. Logo após o grande desapontamento, uma das quatro ramificações que emergiram do movimento milerita – os “espiritualistas”– começaram a proclamar que Cristo havia, de fato, voltado, mas no coração de cada crente. Para eles, tudo não passava de uma alegoria, e Jesus havia voltado de forma espiritual. Desse modo, achavam que tinham ultrapassado o estágio de pecar e tudo o que faziam era puro e santo. Conforme Arthur White descreve, eles acreditavam que “eram santificados, que não podiam pecar, que haviam sido selados e que todos os seus pensamentos e conceitos eram da mente de Deus” (Ellen G. White, 1985, v. 1, p. 71). Suas ideias levaram a comportamentos bizarros, como ter “esposas espirituais”, manter reuniões nas quais os participantes ficavam completamente nus e compartilhar suas esposas entre o grupo.[ii]
Outra distorção perfeccionista destacada por Knight é a possibilidade de obter perfeição física. Nesse caso, adeptos dessa vertente acreditam que seus cabelos não envelhecerão ou que nunca mais ficarão doentes. Tal crença surgiu também entre os “espiritualistas”, após o grande desapontamento. Pregadores como J. D. Pickands proclamavam que haviam se tornado incorruptíveis e não morreriam (Millenial Fever and the End of the World, 1993, p. 250). Essas ideias foram posteriormente adotadas por E. J. Waggoner, que chegou a declarar que nunca mais ficaria enfermo (General Conference Bulletin, 1899, p. 53).
Para adeptos desses ensinos, existe uma relação forte entre a perfeição e a incapacidade de contrair mais doenças. Enquanto a alma é expurgada do pecado, o corpo é liberto do efeito das doenças (Counterfeit Miracles, 1918, p. 175, n. 34.12)
Perfeccionismo adventista
Na Igreja Adventista, o perfeccionismo reapareceu por meio da teologia de Andreasen. Em sua obra O Ritual do Santuário, ele defende que a última geração de adventistas poderá viver uma vida sem pecado. Progredindo em santidade, o cristão que viver nos últimos dias alcançará um patamar em que não encontrará mais tentação para vencer: “Assim como se tornou vitorioso sobre uma tentação, pode chegar a sê-lo sobre todo pecado. Terminada a obra e alcançado o triunfo sobre […] todo o mal, estará pronto para a trasladação.” Nessa condição de impecabilidade, Andreasen conclui: “nada os pode fazer pecar” (O Ritual do Santuário, p. 243).
Andreasen não foi o único a defender essa posição. Para autores como Herbert Douglass, “a última geração de adventistas demonstrará toda a suficiência da graça e do poder de Deus, assim como fez Jesus em Seus dias. Irão confirmar o triunfo de Jesus – que homens, participantes da natureza divina mediante o Espírito Santo, podem vencer todo o pecado durante essa vida” (Concepts of Jesus Affect Personality”, Review and Herald, 31/8/1972, p. 12). Em sua obra Por que Jesus Ainda não Voltou?, ele afirma categoricamente: “Jesus conseguiu – eu também posso conseguir. Posso viver uma vida sem pecado como Ele viveu, pela fé em meu Pai celestial” (2011, p. 72). Para ele, Jesus é um modelo a ser igualado. Outros, como Dennis Priebe e Larry Kirkpatrick se unem a Andreasen e Douglass ao equiparar a última geração com a condição de impecabilidade. Para eles, a Bíblia descreve um povo vivendo nessa condição (The Mind of Christ: How to Have It, 2012, p. 30, 31-32). “Perfeição é viver uma vida madura no Espírito, plena de Seus frutos e, como resultado, sem pecado”. “Deus, de fato, é capaz de manter-nos isentos de pecar” (Face a Face com o Verdadeiro Evangelho, p. 108-110).
Durante seus dias, Ellen White precisou lidar em diferentes circunstâncias com alegações perfeccionistas. Para ela, viver sem pecado nesta vida é um ensino estranho à Bíblia. Conforme a autora destacou, “nenhum dos apóstolos e profetas jamais pretendeu estar isento de pecado. Homens que viveram mais achegados a Deus, homens que sacrificariam antes a vida a cometer conscientemente uma ação injusta, homens que Deus honrou com luz e poder divinos, confessaram a pecaminosidade de sua natureza. Jamais confiaram na carne, nunca pretenderam ser justos em si mesmos, mas confiaram inteiramente na justiça de Cristo” (Parábolas de Jesus, 2015, p. 160).
É verdade que Ellen White sempre incentivou seus leitores a prosseguir para a perfeição de caráter, buscando alcançar a obediência plena aos reclamos de Deus. Certos textos da escritora chegam a sugerir que ela mesma era adepta do perfeccionismo: “Todo aquele que, pela fé, obedece aos mandamentos, alcançará o estado de impecaminosidade no qual Adão viveu antes de sua transgressão” (Nos Lugares Celestiais, 1968, p. 148). No entanto, ela declara que isso ocorreria unicamente no momento da glorificação: “Não podemos dizer ‘estou sem pecado’, antes que este vil corpo seja transformado segundo a semelhança de Seu corpo glorioso” (Para Conhecê-lo, 1965, p. 359).
Portanto, devemos entender que Ellen White e a Bíblia ensinam “tanto a impecabilidade quanto a perfeição, mas nunca as equipara” (Pecado e Salvação, p. 158).
Efeitos do perfeccionismo
O perfeccionismo, assim como qualquer distorção teológica, afeta a igreja e seus adeptos em todas as áreas. Conforme observou Valdeci Santos, o amor de Deus passa a ser visto como algo a ser conquistado e merecido, gerando um sentimento de insegurança no cristão. Porque o crente assume uma posição extremamente rígida quanto ao pecado, Deus é tido como igualmente rígido.
A graça divina também passa a ser interpretada de forma distorcida. “Na perspectiva perfeccionista, a graça apenas fortalece o cristão para fazer aquilo de que ele mesmo é capaz, em vez de transformá-lo e restaurá-lo à comunhão com aquele por meio do qual tudo é possível.” O perfeccionismo rouba temporariamente do cristão a alegria que Deus lhe promete em Cristo. Nos momentos em que poderia se regozijar, ele só consegue pensar no próximo desafio e no próximo alvo. Por fim, cria-se um ambiente farisaico na igreja, pois o perfeccionista “geralmente se inclinará a cobrar dos outros aquilo que ele mesmo estabeleceu como alvo”. Por seu alto comprometimento com a santidade, conforme explica Valdeci da Silva Santos, o perfeccionista é vítima da “sensação de se achar possuidor de uma visão superior”, autopromovendo-se como padrão para os demais (“O perfeccionismo como um obstáculo à santidade cristã”, Fides Reformata, v. XIII, nº 1, 2008, p. 122-123).
Perfeccionismo, portanto, deve ser entendido unicamente como a posição teológica que defende a possibilidade de viver sem pecado antes da glorificação.
Na Igreja Adventista, esse conceito se infiltrou por meio da teologia da última geração, crença promovida por M. L. Andreasen e simpatizantes, que acreditam que a última geração de fiéis alcançará o estágio de impecabilidade antes da vinda de Jesus. Minimizando, de certa forma, a obediência demonstrada por Cristo, essa teologia lança sobre a última geração a responsabilidade de vindicar a lei e o caráter de Deus. Embora essa distorção tenha sido discutida no passado, ela continua a agregar simpatizantes e a prejudicar o relacionamento de seus adeptos com a igreja e com Deus.
Devemos ressaltar, contudo, que, ao defendermos a impossibilidade de viver sem pecar, não estamos negando que, pelo poder de Cristo, o cristão possa vencer suas tentações. Embora não alcance a impecabilidade nessa vida, é responsabilidade de todo cristão se afastar do mal, desenvolver um caráter semelhante ao de Jesus e crescer na perfeição cristã.
GLAUBER S. ARAÚJO, mestre em Ciências da Religião, é pastor e editor da Casa Publicadora Brasileira. Além da teologia, se interessa pela física, astronomia e cosmologia
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[i] A. Cairns, “Perfectionism”, Dictionary of Theological Terms (Greenville, SC: Ambassador Emerald International, 2002), p. 327; R. Rice, Reign of God: An Introduction to Christian Theology from a Seventh-Day Adventist Perspective (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1997), p. 281; David A. Stoop, Living with a Perfectionist (Nashville, TN: Oliver-Nelson, 1987), p. 16-17; J. Hunt, Biblical Counseling Keys on Perfectionism: The Push to Perform (Dallas, TX: Hope For The Heart, 2008), p. 1.
[ii] Glauber S. Araujo, O Caminho da Perfeição: Um Estudo da Teologia da Santificação em João Wesley e Ellen G. White (dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo, 2011), p. 48; cf. George R. Knight, Millenial Fever and the End of the World (Boise, ID: Pacific Press, 1993), p. 251-254.
(Texto publicado originalmente na edição de maio/junho de 2016 da Revista Ministério)
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